sábado, 22 de janeiro de 2011

MARR-KE-TING, O TAO DA POESIA



O marr-ke-ting. Quando o livro Bagagem Não Reclamada esteve para sair escrevi uma notícia publicitária para os blogues. Era assim:

PUBLICIDADE PARA O LIVRO «BAGAGEM NÃO RECLAMADA», A SAIR PELA COSMORAMA

Porquê aceitar o tremendo fastio de ler este livro? Porque

«O tempo que demora
um seixo a sentar-se
o tempo de escamar
a truta até à fonte
o tempo de prescindir
da devoluta ombreira de Deus»

é o tempo que o leva a soletrar.
Quase nada ou muito pouco
para quem se habituou a desbaratar o tempo
deplorando o tempo que não tem.
E tem, novidades, poemas de amor,
num lirismo que não é piegas
e pouco referido no seu autor:

«Saudades de amoras.

Saudades de ler Cortázar na cama,
a dois, sublinhando
“dói negar uma colher,
negar uma porta,
negar tudo o que o hábito seduz
com suavidade satisfatória,
e não há nada de mal em que as coisas
nos não vejam mudar”.

Dói a saudade de surpreender
na tua mão
o espesso corrimento
e de que um dente
bata no meu
- praguejando
contra as línguas mortas.

Saudade do entusiasmo
que não era periclitante
e erguia uma escada
no celeiro.

Antes
dos donativos
e das instruções
para casados:
“come-a
com azeite e sal
e põe outro relógio
no buraco”.»

ou:

«Não há aqui sentimentos à deriva
tudo tem a precisão do que amanhece,

sabendo que a sombra é o lobo
necessário, que no coração
se entrelaçam uma cidade
e o passo dela,
a claudicação
do seu salto
no bueiro, a imprecação
com que espevita
em lâmpadas
a mate luz de Outono.

Nos seus olhos deslaça-se o passado,
vagas só as do mar,
não há aqui sentimentos à deriva –

e assim que ela sorri
sei que a sua função
é tornar-me imortal,
dessa imortalidade que se mede a pulso
nas torneiras
e se auto-intitula:
“A que mantém a água na boca!”»

Tem, além disso, “trovas” do tempo que passa:

«Depois do charuto, pôs-se a apreciar
o baile, os pares, o brilho de um relógio
mole na retina da mulher. Pensou:
hum, ao menos eu amadureci,

não me importo nada que a beleza
me passe ao lado, desde que eu possa assistir.
Mas depois ocorreu-lhe: só a morte
é que dá borlas. E ao som da música

pôs-se determinado a bater o pé,
com uma energia expansiva,
como se manco fosse
unicamente o deus que espreita.»

ou:

«(Qualis vita, finis ita)
No umbral dos anos que passam,
ei-la: dá grilos aos corvos.
Lúgubres, murcham com ela os meses:
dá grilos aos corvos.
Disponho-me a amá-la nove vezes
seguidas numa noite?
A insípida dá grilos aos corvos.
Antes da primeira colheita
dos nossos beijos já ela dava grilos
aos corvos. Se um familiar pergunta
«és feliz», responde «como Castor
e Polux tenho um gorro frígio»
e com uma pinça dá grilos aos corvos.
Por isso já não aguento viver em Lisboa.»

E poemas de outra elaboração, de um inescapável velcro existencial:

«Não eram casas, eram nesgas
de outros espaços que logo
se desapercebiam. Era a morte
assim, prolífica de lugares,

a vigília súbita - indício do pavor
de estar a regressar
a uma diversidade
do ter sido, do vir a ser?

Estuários, ravinas, moradas,
à vez reconhecidos e ignotos
como os de um anjo?
Sonham os cegos ou vêem
noutras partes?
Não há acudimento.»


«Gente irremissa, até no meio dos ciclones,
preocupada com uma malha caída,
um cabelo na sopa. O tecto do mundo
não é o Himalaia mas o coração
que espera, a espera ainda sem folga,
a ungulada asa preta do morcego.
Não ponha música, oiça-me
a música faz-me doer os olhos.
Os mortos também devem ter saudades, entende?»

Bom, vindo de quem vem, não lhe podiam faltar as “chuchas metafísicas”:

«Se, como viu Jasão, a vida
navega por entre rochas
em colisão, que infausto crime
tornou a poesia trivial?
Captura da mais insondável
variação do vento na vidraça,
como a borboleta que espaneja
entre a cal e o muro – quem não viu
nunca poderá adivinhá-lo;
que se acorda para dentro
na rota do milagre e a escarpa
não tem meio, apesar dos fiéis
rogarem em círculo como os cães,
apesar do jacente salto cabisbaixo.»

Mas se, nele, alguns copos ladrilhados por uma honorável tradição:


Adágio101 (lembrando Dylan Thomas)
The death of one god is the death of all

O copo escapou-se-lhe da mão, bateu e rolou ao longo do veio mais macio da velha mesa de mármore - milagre, intacto - no justo instante em que o relógio de parede, nas suas costas, dava as treze e a sua esposa, elevando a voz do escritório contíguo, lhe perguntava a morte de um deus é a morte de todos? Dezembro enchia de musgo as árvores, retrucou ‘hum, hum...’ e, enquanto num calafrio se inteirava do desvelado extravio do seu espírito, reforçou a dose.

só parecem antecipar um lastro “rançosamente” místico:


«Na infância, a Noite era uma
Senhora muito encarquilhada
Que varria a luz até
Adormecer de cansaço.
Depois, a senhora rejuvenesceu
E o seu sexo escandia
Os dragões matutinos.
Hoje a Noite é um pequeno
Ladrão que adormece à espera
De que a ocasião fique vaga,
Ilha onde a minha ilusão
Abre o seu guarda-chuva
E luze, intérmita, no escuro
........................................... »

não prescinde o poeta de uma colorida auto-crítica
(auto-derrisão lhe chamou um crítico
dos mais famosos que há na praça):

«A vida são as luvas da morte, cismou,
e a mostarda subiu-lhe ao nariz.
Espojada a reputação na erva fria,
quis esbofeteá-la, mas o mundo está à pinha
de intrusos que nos distraem. Saiu do café
com a sensação fruste de ser um oráculo naif,
se tanto, um licor fino. Chegado a casa escreveu:
"Este verso é mais infalível que o Papa!"
Ah, ser ao menos traduzido em islandês,
suplicava aos somíticos fantasmas,
já no quintal - descalibrado cenho
entre dois goles de malte, de cotovelos
pregados à sua mesa de carvalho,
rente ao muro de asas abertas que o sitiava».

E apesar de no livro se detectar algumas recaídas românticas, suspeitas de irracionalismo:

«Às golfadas, fere no escuro.
deixa pegadas húmidas,
um odor a algas no convés
da alma. Vestígios que a alba
não desarmará, até ser dia.
Reluta, a alma. Teme
como a uva ser pisada
em vão. Nas luzes
da costa conto os pêlos
de Deus. À cabotagem.
Mas não se alcança Deus
naufraga-se Nele. Justo
farol: a atenção Divina
entrecorta-se de dúvidas.»

tem o mesmo guinadas de astuta colagem ao seu tempo:

«A fada má (a dos românticos),
que envenenava as vogais
de leite das crianças,

a fada preguiçosa, que balbuciava
versos realistas, (‘pode baixar
o volume do seu televisor?’)
e acuava a populaça dos sentidos,

o encanto decadente de quem,
desnutridos os dons, secou
as grainhas entre os dentes,
e agora fala em novos paradigmas,

o poeta e o crítico, dois
testículos degenerativos
que imploram delegação,

ei-los, forçados a depor:

‘o vento frui de si mesmo
ou flúi de fora para dentro?’»

Para além do mais, este é um livro raro, que nunca se esquece do seu leitor:

«Procura-se leitor, morto ou vivo,
doze euros de recompensa,
alguém que restitua à letra
o corpo radiante, as mamas

en su sitio, o cuzinho refilão.
Procura-se leitor, morto ou vivo,
que vaze as minhas mãos
na sua espalhafatosa intimidade.

Procura-se leitor que salpique
a sua actuação com crisântemos,
em vez de desairoso tropeçar

na própria sombra. Procura-se
leitor, que aguente mais que água
tónica ou a acedia que atomiza.

Em que outro livro, relaxa o poema, cumprido o seu fado?

«Desabotoada a calça,
o poema relaxa,
como o guarda na guarita
que vê a manhã dourar
lama, folhas, os estalidos
que lhe amotinavam
a noite. Aceita
então de bom grado
um cálice, algo
que o distraia da missão
cumprida. O ventre
descai, engasta-se
no débito da rola.»

E saiba ainda que é diverso (outra raridade, neste tempo), tão diverso como os retratos dos treze pseudónimos com que começa.
Tudo isto pelo preço de um. Fica barato.
E se no fim se decidir a não comprar, saiba que não tem mal
porque dá sempre flor a derrocada dos castelos.

Veio «o impacto da realidade» e lixou tudo. Agora o melhor é ficar quietinho, a soprar as velas do meu silêncio

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