quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

a anunciação

Estúdio de Francis Bacon
Na Mongólia, o sonhador pode sonhar por um outro, ou até sonhar por numerosas outras pessoas. Leio e pasmo.
Aí estava um negócio - fosse eu um xamã de igual qualidade.
De qualquer dos modos esta é a única explicação que encontro para um sonho que me perseguiu durante anos, ao ponto de se ter cunhado como uma recordação que eu reportava ao vivido. Durante anos – uma década, precisamente – estive convencido de que quando me casei com a minha primeira mulher tínhamos ido viver para uma casa emprestada, na Avenida Todi, em Setúbal, até a nossa, oferecida pelos pais da noiva, estar pronta.
Era um apartamento, num primeiro andar de grandes janelas rasgadas – a casa fora em tempo adaptada a loja –, um T-0 com kitchnet. O facto é que aí vivi – seis meses - o único período de pacificação do casamento, ternos, unidos, degradando-se tudo quando nos mudámos para a nossa casa.
Anos depois, sempre que voltava a Setúbal, palmilhava a avenida, procurando a casa, em vão. Todavia, eu tinha presente cada pormenor do seu interior, a mesa redonda de mogno com flores de marfim embutido, os cadeirões com almofadas vermelhas, a estante de boa madeira que em noites ímpares acordava em mim sonhos de larápio, a Clara no balcão da cozinha a rechear as beringelas, o tapete com dois peixes em 69… A avenida é que teimava em desmentir-me.
Quando eu e Clara nos pudemos reaproximar, sem dano ou atribulações, perguntei-lhe pela casa, e jurou-me ela que fôramos para a casa nova no próprio dia do casamento.
Ainda não estou convencido, apesar de a partir de hoje ter por certo que um sonho de outrem me visitou e que não passamos do atelier de alguém.

Sem comentários:

Enviar um comentário