segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

A FÁBULA DO OURIÇO E O BACALHAU À GOMES DE SÁ

matta: integral do silêncio - dos mesmos inúmeros fios se tece a palavra
O Ricardo levanta uma questão, no que toca ao poema postado em baixo, «Não Há Armistício Possível», que merece uma pequena conversa. Acompanhemo-la de bacalhau à Gomes de Sá. Ergue o copo, Ricardo - vamos num brinde?
Agora já podemos prosseguir. Diz ele: «Tenho que recorrer por vezes, com gosto, ao dicionário para te ler... mas confesso que é um enorme prazer!».
Esta questão que o Ricardo levanta não é de somenos: será que para “comunicarmos um poema” convém reduzir o campo lexical às 900 palavras que atribuímos ao comum dos leitores? Grande parte da poesia contemporânea segue este isco, no rasto do leitor, e porque persegue a contaminação directa a que as letras das canções parecem submeter  o ouvinte, esquecendo-se que uma letra é a lebre na corrida: o verdadeiro corredor é a música.
Creio ser um erro e que devemos fazer exactamente ao contrário. A capacidade expressiva de Shakespeare e de Guimarães Rosa, competentíssimos vasodilatadores do verbo, resultava num potentíssimo jogo luminotécnico: ao usarem mais palavras iluminavam formas de sentir e patamares reflexivos… que eram indiscerníveis antes.
Isto é, não se trata de uma questão de acumular sinónimos para designar a mesma coisa - um exercício luxuoso e inútil - mas sim de dar relevo às diferentes perspectivas da mesma coisa que cada palavra ilumina, multiplicando assim as nuances, as subtilezas, a sensibilidade do humano.
Quando se gosta só de rock, por exemplo, e se rechaça outro tipo de música, não se está exactamente a dar livre curso a uma mera questão de gosto, é mais grave o que tal prenuncia: irreflectidamente está-se a truncar a sensibilidade e a reduzir os parâmetros para a atenção (há ritmos, géneros e expressões musicais que não cabem no formato de 3 minutos), sucedendo-se uma natural amputação da nossa janela perceptiva ( - eu não estou a dizer que não gosto de rock, ó iluminárias!)
É o que intriga Charlie Parker numa cena crucial do Bird, de Clint Eastwood. Charlie calcorreia uma avenida que dantes estava repleta de clubes de jazz mas agora unicamente se ouve nela a batida do rock’n roll. O saxofonista resolve entrar num dos clubes. Vê com surpresa a animação dos jovens, que dançam, e no palco descobre um dos seus antigos companheiros numa banda. Fica um bocado a ouvir e o que ouve enerva-o, e então, num impulso, sobe ao palco e tira o saxofone ao amigo. Foge com ele pelos bastidores e segue-se a perseguição de Charlie pela multidão, pelo músico amigo e pela polícia. Até que o apanham num beco. E então Charlie devolve ordeiramente o saxofone e explica-se ao amigo: “desculpa lá, eu só queria ver se o teu saxofone estava avariado, pois só te ouvia tocar duas notas”.
No instrumento que é a linguagem passa-se o mesmo, se não tocamos com todos os pistões a expressão fica coxa e a compreensão do mundo que nos rodeia também, visto persistirem zonas penumbrosas que não iluminámos.
Antes dos hipermercados, por exemplo, não sabíamos que havia quatrocentas qualidades de queijos no mundo, e o nosso sentido do paladar estaria decididamente muito empobrecido se a nossa biografia gustativa se resumisse ao queijo Flamengo. Quem só conhece o Flamengo julga que a música só tem um instrumento: as congas. E jura que não existe o piano, ou o violino.
Reparem, e abrindo outro plano, se até a porcaria de um átomo - um átomo que nem tem tamanho para um ácaro se assoar, um verdadeiro zero à esquerda! - se pode emaranhar no nosso destino, como não temer o descalabro que uma relação, descuidada, desinvestida, desirmanada com a linguagem e as suas infindas armadilhas pode provocar da nossa vida? Por que é ninguém pensa nisto?
O poeta basco Bernardo Atxaga narra num poema a história de um ouriço que saiu do bosque e se pôs a atravessar a auto-estrada. Na sua língua, contando os verbos, as palavras não passam de 27. E o ouriço demora-se pachorrento no asfalto a pensar nas 27 palavras da sua língua: inverno, ouriço, águia, rã, caracol, minhoca, insecto, rio, fome, o sol está porreiro, etc. Pela estrada aproxima-se uma carlinga que ele não reconhece porque na sua língua não existe qualquer vocábulo para nomear aquela coisa monstruosa que se aproxima. Fica quieto a observar. E no momento seguinte é esborrachado porque a sua língua não compreendia a palavra “camião”.
Eis o que nós, seres humanos, afinal, somos: um ouriço. E o nosso trabalho consiste em alargar tanto a consciência do mundo como a sua nomeação, sob pena de sermos trucidados prematuramente ao confundirmos a aceleração do camião com a simpatia do caimão.
A consciência, para Fernando Pessoa, era uma “escada sem degraus”. Ou seja, em cada patamar da escada ilumina-se um novo tipo de percepção, tal como ver uma paisagem do cimo da montanha altera a visão que se tem do vale.
De cada vez que irrigamos com mais um afluente a nossa hidrografia semântica estamos mais perto de sair do labirinto, ou pelo menos, se lhe multiplicámos os corredores, as sinuosidades, os anseios, deixámos de ser prisioneiros dele para passarmos a ser seus construtores.
É nisto em que acredito firmemente, Ricardo. E quando era miúdo acreditava também no Ricardo-Coração-de-Leão.
Olha, acabaste o vinho. Abrimos outra? Já que o Benfica ganhou...

3 comentários:

  1. És um mestre, é o que tu és!
    Obrigado.
    Um abraço,
    Ricardo

    ResponderEliminar
  2. Cabrita, tu és o Coentrão da nossa Poesia. Abre lá mais uma garrafa...

    ResponderEliminar
  3. Não me parece existir brinde mais justo do que ao Benfica e à poesia. Count me in, gentlemen.

    ResponderEliminar