quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

NÃO SE EMENDA, A CHUVA IV



vai a capa ao contrário, para que o meu amigo sinta
no seu pescoço
a dimensão do meu desconforto 
As amenidades tropicais têm lados sombrios, que arrombam qualquer vaidade.
Os Correios, nesta terra, são uma lotaria e não um serviço. Quando cheguei a Maputo há cinco anos, a coisa funcionava, depois houve eleições e o partido vencedor achou-se com legitimidade para fazer trocas e baldrocas. Como o homem que tinha arrumado a casa era da Renamo apressou-se a substitui-lo por um fiel à nomenclatura. O resultado é da mais palpável desgratificação: receber hoje uma carta é um dom, uma encomenda já pertence à ordem do milagre.
Há cinco semanas que o editor meteu no correio em Braga um pacote com alguns exemplares do meu último livro, cheirando ainda a tipografia. Há cinco semanas que todas as manhãs me dirijo à catedral de Maputo e faço uma prece para ser nesse dia que poderei cheirar, sentir o peso do livro, a volúpia da letra impressa, dirigir-me com ele ao balcão de um bar e pedir, dê-me um triplo, faz favor (as doses aqui são risíveis: é uma colher de sopa por dose), enquanto lhe acaricio a capa e imagino a noite de amor escaldante que vamos ter. Rien de rien.
Aqui deixo a capa e em baixo quatro poemas do corpinho bem feito que o livro tem:

Como se esfolasses um animal,
atiras-te ao verbo sem
dares conta: é ele quem
te impele à porta giratória

por onde se acede ao salão
que anicha, em cima
da secretária de mogno,
a tua solidão empalhada,

as tuas asas ferradas
pela obsessão
de voltares a ver a tua mão

descarnada, feita de ar.
E esse sonho
é a tua única saída.


SOPRA AS TUAS VELAS

O corpo com a idade impõe ora folga, ora um
alpendre certo (com vinha de enforcado) aos apartes,
enquanto surripia o humor aos corvos.
Um dia esquece-nos, expele pelos olhos uma faúlha

preta, e eis-nos arredados de toda a escuta
como as flores de plástico, que macambuzam a televisão
da avó. Já fui mais festivo, fotografava ao acaso
e, na ampliação, detectava a secreta geometria dos fundos,

as gengivas que desbravam o riso de Deus.
Mais presciente a minha filha de três anos:
«és a sereia Ariel ou o linguado?».

Nem hesita: o linguado!
Entra no teu silêncio e sopra as tuas velas,
recomendava, astuto, o Victor Hugo.



Assevera o psicanalista Gregório Baremblitt
com a argúcia devida a quem tem um nome
que só Jeremy Irons saberia interpretar:
há infinitos modos de voar,

não sendo necessário escolher o de Ícaro
e menos ainda o de Santos Dumont.
É o que penso a sul, fixando
nesta esplanada sobre a baía,

os seus peitos de bronze e o gesto redondo
com que o seu dedo engancha a madeixa
atrás da orelha enquanto

o seu olhar húmido me recita
trinta e três modos
de voar e de morder, pelo menos.

.
Será hoje que a vaidade me bate à porta ou continuarei a arrastar a modéstia, enquanto o galo me agarra pelos gasganetes, o galo com pés de morsa?
Há-de o sacana ter lançamento no Camões, em Maputo, apesar do torcicolo.

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