sábado, 19 de fevereiro de 2011

O EDIFICANTE SUPREMO AMOR DO CINEMA

De vez em quando recebo notícias do burgo, da Lisboa de chinela no pé.
E o que me chega soa-me a golpadas.
Como esta do último concurso do ICA (Instituto de Cinema e Audiovisuais) de documentários, cujo resultado foi o seguinte, segundo o relato de um amigo:
«E quem fica em primeiro lugar é o Mozos com um filme sobre.... o Bénard da Costa; depois o Botelho que quer filmar 4 artistas, o João Canijo com uns "guias de Lisboa", etc, etc... E ainda aparece o Silva Melo com um filme JSM por JSM.»
Enfim, nenhuma surpresa: eis-me ejectado para o passado.
de manet a magritte: bate-se a arte em castelo e serve-se fria: o que importa é continuar à janela
A primeira vez que concorri ao ICA (era então IPC), há mais de 20 anos, foi como argumentista. O filme ficou em segundo no Concurso para Primeiras Obras, onde só era atribuído um subsídio. O argumento era sobre o Uriel da Costa e o produtor do filme que nos ganhou estava no júri. Quando eu inquiri as funcionárias do Instituto sobre esta irregularidade, sossegaram-me com o ar mais cândido do mundo: «Mas o sr. dos tantos não votou no filme dele!». Não precisava, bastava-lhe dar uma pontuação baixa (de 0 a 5 pontos) no concorrente directo. Assim perdemos o concurso por 1 ponto.
Quem ganhou no concurso geral: O Botelho, o Grilo, o Jorge de Silva Melo, etc., baralhe-se e dê-se de novo… 
A penúltima vez que concorri ao ICA, há cinco anos, antes de me pirar, foi como realizador, lavrava-se na acta do júri: é a história mais original do concurso, o argumento tem grande qualidade, os diálogos são notáveis, o candidato tem um currículo ímpar… etc. Era um ditirambo. Mas fiquei em 33º lugar, e o meu produtor, o Paulo Branco, teve uma péssima nota, pois de facto… não tem currículo.
Comunicar com o passado é como visitar um palco abandonado a meio de uma peça, os adereços mantêm-se lá mas já mil vezes urinados pelos gatos vadios. Mas há dias em que, dado ser o inferno uma empresa falida, resistimos a tudo menos à tentação, como diria o Oscar.
Portanto, o Mozos continua a deambular nos cemitérios, e o tema é uma jogada de oportunidade: quem pode negar subsídio a uma fita sobre o Bénard, se ainda por cima não se lembraram disso em vida?
Eis um dos lados do dado viciado à partida.
Depois temos o Botelho, que se esgatanha como um leão quando não recebe subsídio, o que constrange o júri, e que acabou de estrear um filme com um tema de prestígio: O Livro do Desassossego.
Não interessa se o filme anterior é bom ou mau (não o vi), a ousadia, na aldeia, é que não admite contraditório.
E ainda por cima o documentário tem por foco 4 artistas - se fosse um só apenas se perdia uma gema, mas quatro… e todos eles veneráveis.
O dado tem outra face viciada.
O Caniço é um vivaço, é de facto o realizador indicado para fazer uns “guias de Lisboa”, mas porque não ir buscar a massa ao turismo… ou à câmara de Lisboa? O problema será do regulamento, mas como é que o júri consagra um projecto com absoluto ar de encomenda?
Outra face viciada.
O que é espantoso é que são todos da ficção mas agora, para não encolherem o cinto, têm de pastar em território alheio.
E chegamos ao Jorge, essa fera ascética que é um craque no ula-ula, com uma cintura que transborda cintilante em todos os tabuleiros.
O Maquiavel da Coelho da Rocha é um mago da estratégia, omnipresente em todos os tabuleiros. Apesar de ser invariavelmente dos mais beneficiados (no teatro) e de trabalhar com condições muito encorajadoras, consegue fazer passar o discurso de ser um amaldiçoado à margem de todos os poderes. Falta-lhe a grandeza com que o César se usava de dinheiros públicos e depois escarnecia: «Quero que o espectador se foda!», mas só o Jorge para fazer passar um barthesiano «JSM por JSM» - e essa é a prova material, honra lhe seja feita, de como é hábil no jogo de cintura.
(Aparte: só no futebol é que não é possível um grande guarda-redes fazer um filme sobre si mesmo porque não é possível apresentar-se como um grande desportista e admitir que consentiu alguns golos porque gostava de golos bonitos… mas no cinema sim, é o seu encanto).
Toda esta gente não cabe inteira numa caricatura, são mais complexos e alguns têm manifestas qualidades, não é disso que se trata.
Trata-se do ar irrespirável que a previsibilidade da decisão do júri dá. E da corrosão de carácter que a situação impõe. E da sensação de que o vale-tudo se apresenta agora como um atributo da imaginação.
A última vez que concorri ao ICA foi como argumentista, no concurso dos filmes para os PALOPs. Ficámos em segundo, a centésimas do primeiro, que nem sequer entregou um argumento: ganhou com uma “memória descritiva”. Escuso de repetir o que vinha na acta sobre o argumento: era Guerra e Paz. Mas o Tolstoi perdeu contra um folheto de cordel, que não era sequer um guião. Propus a outros concorrentes que impugnassem o concurso. Ninguém se dispôs ao melindre – o que se passa nos bastidores e que torna toda esta gente cúmplice de uma falcatrua que prejudicou a todos é que me escapa. Sempre me escapará.
Tenho outra pessoa amiga que foi a este concurso. Deve ter perdido e andar deprimida pois não me responde aos emails. Aliás, apesar de ter ganho já o «Le Cinéma Du Réel», o mais prestigiado certame de documentários da Europa (e que equivale a ter ganho em Veneza na ficção), nos concursos do ICA, o seu currículo é sempre pontuado com a nota mais baixa.
Os concursos do ICA lembram-me o meu espremedor de limões. Como sou o último a levantar-me em casa, quando chego à cozinha já a cambada incrustou de caroços o escoador e só dois ou três buracos é que ficaram desobstruídos. É tortuoso o caminho do sumo para chegar aos buracos livres e pelo meio perdeu-se metade, e entretanto fico com a sensação que junto aos buracos livres, onde o sumo já chega filtrado e é mais saboroso, estão sempre os mesmos caroços.  
 Um gajo para sobreviver no cinema tem de dar umas golpadas… pelo menos no seu carácter. O pote fica com uma racha.
No próximo concurso do ICA, os beneficiados serão o Grilo, o Seixas Santos… and so on.
Nenhum deles assinaria o poema do José Emílio Pacheco que traduzi, num post anterior
Lisonjeei o meu auditório      renovei
o seu repertório de lugares comuns
de ideias adequadas aos tempos que correm
Pude fazê-lo rir uma ou duas vezes
e terminei quando se instalava o tédio
Em recompensa aplaudiram-me
Aonde
vou eu esconder-me e devorar a minha vergonha?
porque o cinema,- o dinheiro que faz circular, a mediatização das criaturas - é o último grande avatar da monarquia, e quando, chegados duma burguesia pelintra, nos sentimos princesas e duques entretemo-nos a beber garrafas de Bordeaux de custos astronómicos (como o Canijo, que ao menos confessa), em vez de gastarmos esse dinheiro em formação para fazermos filmes melhores.
Eu cá faria o mesmo, por isso, antes de ficar depravado pela mais cínica das ignomínias, abandonei a profissão.
A escrita não admite o descaro, é um combate sem tréguas e não é permeável à estratégia, essa paradoxal impudência dos vencedores.
A escrita que me importa, tá claro… que ascetismo é cá comigo, falta-me é a cintura.

1 comentário:

  1. Olá!

    (olha, roubei-te:

    http://lishbuna.blogspot.com/2011/02/arte-poetica-jose-emilio-pacheco.html)

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