segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O OURIÇO E OUTROS CUMES NA MINHA VIDA


continuamos com Doisneau

1
Quando a minha avó urinava, sempre de porta aberta, eu,
no corredor, fazia o pino para ver se lhe via o... O quê, espicaçou o Piruças. O ouriço, respondi-lhe pronto.

2
O Resende era um trinco do Belenenses, se a traição não me dribla a memória.
Vivia na minha rua com uma senhora mais velha. Bonita, discreta, das que furam as redes ao desbocado carteiro.
Da roseira imarcescível que foi aquele leito nasceu a Resende, miúda confiável, de linhas e carácter.
Foi a minha primeira namorada.
Enfeitava-a a inocência com que encarcerámos o grilo e imaginámos que ele sabia.
Pouco mais sei desse meu folguedo sentimental aos seis anos, mas o convívio com tão recatada companhia forjou o meu primeiro sonho erótico.
Caminhávamos de mãos dadas ao longo de um socalco estreito, situado a meio de uma falésia, ilimitada para cima e inacabável para baixo. O dia nascia, e cheirava a acetona. Andávamos aos espargos e manejávamos a lâmina do caminho com a perícia, o leve tremor dos afortunados.
  

3
O apelido dele era Caldeira, o meu companheiro de carteira. Ultrapassava-me em meio palmo e tinha um sotaque embebido nas poldras do Guadiana. Éramos os ruços da turma. Sempre juntos, como a maçã e o pardal.
No último dia de aulas, anuncia-me o Caldeira, vou passar os meses do Verão a trabalhar. Numa serralharia. A amealhar dinheiro para as férias.
Pareceu-me uma ideia do caraças. Ele já lá estivera no ano anterior, na oficina onde afocinhavam o pai dele e dois tios. Convenci-o a levar-me com ele. Ele parlamentou em casa e o aval foi dado.
Lá me apresentei ao serviço, de calcinha puída e t-shirt a condizer, lavadinho para o meu primeiro dia como operário.
O encarregado mirou o franzino de soslaio e resmungou algo ao ouvido do pai do meu amigo, mas a solidariedade falou mais alto. Hum, insistiu o encarregado, reticente.
Entrava-se na oficina por uma rampa. Foi aí que dois homens deitaram a primeira chapa de alumínio, com círculos perfeitos desenhados de alto a baixo; tendo-me depois um deles  passado a tesoura para a mão. Seriam para cima de 50 círculos, solertes, sem espinhas.
Surpreendeu-me a facilidade com que a tesoura cortava o alumínio. E animei-me. Apesar do segundo círculo me ter parecido mais bicudo.
O Caldeira, de impecável fato de macaco, estava ao torno a dobrar cavilhas, e sorria-me.
Diria que continuei a sorrir até ao sétimo círculo.
Ao almoço, o encarregado despediu-me com uma palmada nas costas, amarfanhando-me uma nota de vinte na mão. “Talvez para o ano, rapaz, não desanimes...”. E ofereceu-me um dos quadrados de alumínio que tão arduamente recortara.
O Caldeira apanhou-lhe o jeito.


4
Especializou-se em corcundear abismos, o pára-quedista.
Também eu, por isso, à entrada do minuto sessenta constipei-me.
Sobre o dorso da amada, na duna, quatro quilómetros para lá da Fonte da Telha. Havia lá o Meco nessa altura!
Em alongamentos, subindo e descendo no escadote da crepitação, que dava acesso ao pescoço alto dela, constipei-me.
Na minha primeira vez.
Em palpos de aranha a lanterna para encontrar um cabelo de Deus na floresta! Quero dizer, Deus estava esquecido, ou tinha ficado lá atrás, onde, farto de estar sozinho, agarrava à mão os favos de vespa.
Amar implica consentir na defenestração, daí ser menos frequente.
Eu constipei-me.


5
Tenho o fôlego curto para as compras, mais curto que a bolsa, que propende à fífia.
Mas pelo Natal, antes da minha mulher me pôr a ruminar o anátema, afasto os olhos da décima leitura d’ As Metamorfoses de Ovídio e tento arrastar-me com alguma fluência
pelo tremeluzir das montras.
Entramos na Levi’s, onde as malhas respiram até debaixo de água, dou uma concordância silábica a uma cor, a um padrão, porém o que me atrai é reencontrar Leda e saber que um cisne esgaravata em mim para sair.
Passamos ao Massimo Dutti, as calças fazem figas para me encontrar, e ao balcão diviso
Europa. Sinto-me de imediato um touro de uma coruscante fotogenia.
Segue-se a Timberland e os seus botins alinhados como vagens. O jeito voluptuoso com que a rapariga me afeiçoa a calçadeira ao calcanhar projecta-me nas delícias de Io e no secreto miolo das nuvens.
Gosto depois de sair para a aragem da rua com as mãos pejadas de sacos de papel e de, observando os gestos inábeis da minha mulher, pasmar com as alegrias da renúncia.
E é ao entrar no táxi que invariavelmente me ocorre a máxima da minha avó Judite: «ao pó tornarás, mas antes serás gaiteiro!».










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