quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

OS DOIS MUNDOS E A LENITA GENTIL

Bati à porta. Ouço passos aproximando-se, e uma voz roufenha, mas feminina, pergunta:
- Quem é?
- Cabrita.
- Lenita?
- Cabrita…
- Ah Lenita! - insiste a empregada.
Afastam-se os passos. Ouve-se, em surdina, a voz anunciar, lá dentro:
- É o senhor Lenita.
Entrecortam-se de novo passos, estes mais pesados e decididos. Abrem a porta, é o dono da casa, que cumprimenta:
- És tu… entra.
Entro. Passamos à sala. Ele oferece-me um café, falamos de coisas de circunstância, o futebol, o Egipto, mulheres (ele é solteiro), sorvemos um café, esmagamos o filtro do cigarro no cinzeiro e passamos então ao trabalho. Uma hora a fixar uma grelha de rubricas para um programa cultural na televisão, a discutir as vantagens deste ou daquele tema, a negociar, a rir ou a trocar informações um nadinhas inchadas de afectação, pequenos pigarros, uma anedota e um biscoito molhado no chá. Feito.
Ele, levanta-se, vai à estante de CDs e pergunta-me:
- O Lenita já ouviu o último cd do Ahmad Jamal? Trouxeram-me da África do Sul.
Arregalo os olhos, sem saber se ele está a brincar. Ele, apanhando-me abstraído, insiste:
- Lenita… está pensativo… - graceja – é apenas um disco…
Não o corrijo. Respondo à pergunta. Ele coloca o cd. Oferece-me um charuto, fuma outro comigo. Na meia-hora seguinte chamar-me-à mais duas vezes Lenita. Há dois meses que trabalhamos juntos, mas estivemos sempre em grupo, realizo então, e nunca calhou ele dirigir-se-me pelo nome. Eu, o mulungo (branco em shangana) do curso de Ciências de Comunicação e um cronista na imprensa, ele um antigo bolseiro da John Hopkins, que se move com o à vontade de quem conhece de ginjeira dois mundos.
Há dois meses que trabalhamos diariamente, que raio, protesto mentalmente, enquanto me interrogo sobre as verdadeiras intenções da criatura que me interpela, sobre a sinceridade ou o oportunismo do seu contacto, se tencionará construir um mínimo de chão para uma estima mútua ou se apenas me está a usar, e aceno com a cabeça fingindo que o ouço, armo um vago sorriso, ou antes um sorriso com andaimes que pareçam  gentis.
E então vem-me a evidência: para este gajo, eu sou a Lenita Gentil... e disparo um gargalhada estentórea, que o deixa à nora.
Agora somos dois, e evito explicar-lhe, quando lhe noto o desconcerto.  

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