quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

PATOS E CHAPAS/ um conto de Maria José Arthur

miró - se eu tivesse asas
É com imenso prazer que vos apresento uma nova escritora moçambicana, Maria José Arthur (assim mesmo, com «h» e reminiscências da Távola Redonda). Maria José é antropóloga e edita um excelente boletim, Outras Vozes (ver aqui), que aborda os problemas do género e da violência doméstica com rigor e coragem, mas tem-se mantido inédita como escritora de ficção, pois, escrupulosamente, foge de engordar qualquer nova vaga de “exotismos” - mal de que padece grande parte dos olhares que assentam sobre África.
Este conto/crónica faz parte de um grupo de quatro que será editado na Colecção Acácias, que eu dirijo editorialmente, e de que é coordenadora executiva a Teresa Noronha, livros produzidos pela Escola Portuguesa de Moçambique.
Tive uma enorme dificuldade em escolher qual dos quatro divulgar, por várias razões. Um deles, Um Equívoco, parece, sem que a autora o adivinhasse, o meu auto-retrato, e eu não resistiria a rabular sobre isso, desviando a atenção do conto em si, os outros dois são muito bonitos, muito dominados (um deles A Bruxa, é mesmo o que prefiro), mas menos “exuberantes” do que julgo necessário a uma estreia que atraia um bom holofote sobre uma revelação meritória. Acabei por escolher este, Patos e Chapas, não apenas por ser uma deliciosa crónica do quotidiano de Maputo como também por questões rítmicas, aspecto nada despiciendo à recepção de um novo autor.
Leiam e desfrutem.
                                                                PATOS E CHAPAS

Quem disse que os patos são animais pacíficos? Tal como vejo as coisas e de acordo com a minha experiência, até a mais letárgica das criaturas se pode encontrar no meio de um conflito, daqueles cabeludos, de envolver meia cidade e as mais altas autoridades. Foi o que aconteceu com um pato de vida anónima, quarto filho de uma ninhada, que depois de uma breve exposição à fama teve um trágico destino. O problema é que nesta estória, dele, que foi a principal vítima, pouco se ficou a saber dos desígnios, das intuições e dos seus secretos sonhos de animal. Se deixou viúva e filhos, ignora-se. O que é certo é que ele era indisciplinado, pois tinha criado o hábito de se escapar da cerca da casa e atravessar a rua ao sabor dos seus caprichos. E foi numa dessas escapadelas que se atirou contra o chapa que circulava a alta velocidade ainda tão cedo na manhã, pois mal haviam dado as seis horas. O pato desatou a fugir, bateu as asas para ir mais depressa, esvoaçou, e por isso o embate deu-se ao nível do vidro párabrisa da carrinha, estilhaçando-o de imediato.
O motorista do chapa não percebeu logo o que se passava. Num momento deslizava veloz pela rua da Estratégia Popular e no instante seguinte ficou com o vidro no colo, felizmente em pedaços não cortantes. Jacinto, de seu nome, era um jovem empreendedor, que em três anos tinha passado de cobrador a motorista, que é o mesmo que dizer, o topo da hierarquia neste negócio de transportes. Mais adequado à dignidade que exibia. Muito se tinha esforçado para isso, evidenciando-se por ser expedito e duro o bastante para enfrentar qualquer cliente mais exigente ou recalcitrante. Sendo que o sistema de pagamento estava baseado no número de viagens excedentárias para além das suficientes para atingir o montante diário que tinha de entregar ao proprietário do chapa, o tempo era um factor muito importante. Por exemplo, se conseguisse ter a camioneta cheia, bastavam oito viagens por dia para juntar a quantia devida ao dono da viatura. Todas as que fizesse a partir daí destinavam-se ao pagamento do combustível e depois era só lucro pessoal. Também devia assumir os riscos de acidente, desde que provado que fora por sua culpa, e as multas por excesso de velocidade. O percurso normal era do subúrbio mais remoto, até ao centro da cidade. Ir e vir consumia-lhe uma hora em períodos calmos e quase duas horas nos momentos de maior tráfego. Em suma, Jacinto era uma máquina de fazer dinheiro para o seu empregador, e a única possibilidade de reverter essa situação a seu favor era conseguir rendimentos razoáveis para si mesmo. Nem aos Domingos podia parar, não fosse entrar outro jovem que se propusesse ao patrão, prometendo trabalhar mais e todos os dias, acabando por ser posto de lado. Aliás, tinha sido dessa maneira que ele conseguira aquele lugar. Muito intrigara até demonstrar que o anterior motorista se dedicava pouco ao trabalho.
Quando o pato partiu o vidro párabrisas, Jacinto já ia na segunda viagem da manhã e o incidente estragou-lhe o dia. Ao preço a que estavam as peças, repor os estragos ia-lhe custar uma semana inteira de lucros. Havia, pois, razão para lamentar e praguejar contra o azar. Parou imediatamente o chapa com intenção de procurar pelo dono do pato, para responsabilizá-lo pelo acidente. Pelo sim, pelo não, deitou a mão ao animal, prova material do que acontecera. Ajudado pelo cobrador e observado pelos trinta passageiros que se amontoavam no interior da carrinha, interpelou vigorosamente os passantes e as mulheres que àquela hora procediam à limpeza dos quintais das casas na proximidade. O dono do pato, se deu conta do alarido, manteve-se prudentemente escondido. Afinal, mais valia ficar sem um animal do que assumir estragos que dariam para comprar mais de dez patos. De nada valeram as ameaças e os insultos, não se conseguiu descobrir a quem imputar as culpas do desastre. Foi aí que um dos passageiros sugeriu uma queixa na esquadra de polícia mais próxima, o que poderia talvez, e frisou o talvez, servir como prova para o proprietário do chapa, de que o motorista estava inocente de culpas no acidente. Este, a quem não restava mais nenhuma alternativa, agarrou-se à sugestão e, desviando o chapa da sua rota, para lá seguiu com os seus trinta passageiros e com o pato que, para além do vidro partido, constituía evidência única do acontecido.
Perante este acto intempestivo, os passageiros ficaram revoltados. Até mesmo o que fizera a sugestão, não esperara ficar envolvido directamente nessa aventura. Àquela hora da manhã, com pouco movimento ainda na cidade, os passageiros conheciam-se vagamente uns aos outros. Havia operários que se apresentavam para a mudança de turno, guardas de prédios e de estabelecimentos comerciais, empregados domésticos e vendedores, que ou iam comprar verduras e fruta para as revender mais tarde noutros mercados, ou iam montar as suas bancas. Embora já de há muito habituados às decisões arbitrárias dos condutores dos chapas, como mudar de rota a meio do caminho ou fazer paragens não previstas para o almoço ou lanche do motorista e do cobrador, o desvio do veículo para uma esquadra da polícia, onde toda a gente sabe que os assuntos demoram imenso tempo a resolver, já parecia exagerado. D. Guilhermina, grande e obesa, que por esse motivo fora obrigada a pagar o equivalente a dois passageiros, era quem se sentia com mais direito de refilar e não se coibía de fazê-lo, enchendo a viatura com a sua voz aguda mas forte. Escudando-se nela, ergueu-se um coro de vozes discordantes, protestando contra o que seria um inevitável atraso nos seus afazeres diários.
Jacinto ignorou este coro de protestos não se dignando sequer a responder e, com a autoridade de quem tem o volante nas mãos, continuou em direcção à esquadra. O cobrador sentiu-se obrigado a intervir, talvez por estar do lado de cá, perto dos passageiros, e mandou um berro para se fazer ouvir dizendo que se calassem pois todos eram necessários como testemunhas. Este tom autoritário ainda exacerbou mais os ânimos e em breve, no apertado espaço da camioneta, se instalou a confusão. Aproveitando que todos se encontravam concentrados na sua revolta, Jorge foi metendo as mãos nos bolsos dos passageiros mais próximos, com o que conseguiu arrecadar algum dinheiro. Do lado contrário, Damião, pensando passar despercebido no meio de tantos encontrões e empurrões, foi-se insinuando entre as coxas da passageira à sua frente, roçando-se primeiro devagar e depois mais descaradamente. Nessa altura perdeu o controle e foi desmascarado, o que lhe valeu uma bofetada e um pontapé da visada, mulher séria nada dada a aventuras casuais com qualquer desconhecido e ainda para mais em chapas! O berreiro que fez chamou a atenção dos outros, que alertados, voltaram a tomar as precauções habituais neste tipo de transporte, deitando imediatamente a mãos aos bolsos. A agitação ganhou mais consistência com o coro dos que acabavam de descobrir terem sido roubados.
Assim, quando o chapa parou finalmente em frente à esquadra, as queixas a apresentar não se limitavam só ao infeliz acidente com o pato, mas tinham entretanto sido estendidas a outros assuntos. Ao abrirem-se as portas saíram todos em tropel e no meio de um vozeiral que despertou imediatamente os agentes sonolentos, que completavam o turno da noite e contemplavam ansiosamente o relógio a calcular quanto mais tempo lhes faltava para despegar. Jacinto avançava na frente com o pato na mão, seguido do cobrador e de trinta e tal passageiros enfurecidos, que falavam ao mesmo tempo.
Os agentes que se encontravam nos fundos, crendo tratar-se de uma invasão ou manifestação a propósito de qualquer motivo desconhecido, acorreram de armas nas mãos, amedrontados, prontos a venderem cara a pele. Quando se aperceberam tratar-se de um grupo animado simplesmente do propósito de participar ocorrências policiais, veio-lhes ao de cima a natural arrogância das forças da lei e, usando do tom mais imperativo e de gestos ameaçadores com os cacetetes em punho, conseguiram restaurar um pouco a ordem. Quando o oficial de serviço indagou sobre a ocorrência que ali os trazia, nova algazarra se verificou, com Jacinto a falar do acidente e brandindo o pato, as vítimas do roubo a exigirem justiça e a passageira molestada a querer denunciar o assediador.
Ao fim de um certo tempo foi possível chegar a um consenso, de que primeiro se explicaria a presença inusitada de um pato na esquadra, passando-se depois às outras ocorrências. Entretanto, para não prejudicar nenhum dos queixosos, ninguém foi autorizado a ir-se embora, pois ainda havia que revistar um a um os passageiros, para se apurar quem tinha deitado a mão a bolsos alheios.
Após uma primeira explicação de Jacinto, a medida imediata que se impôs foi encarcerar o pato que, bastante abalado com o acidente, nem forças tinha para reagir perante tanta balbúrdia. O animal foi colocado na cela dos fundos, destinada à prisão preventiva dos infractores que passavam pela esquadra. Em seguida foi perguntado ao queixoso o que pretendia exactamente, ao que este respondeu querer descobrir o dono do pato e um papel oficial, garantindo que o acidente tinha sido notificado à polícia e que ele, o motorista, estava isento de culpas. Os agentes, que não gostam de se comprometer de qualquer maneira, foram observar cuidadosamente a viatura e o vidro partido, para no fim emitirem o veredicto: assim do pé para a mão, era difícil de saber de quem tinha sido a culpa. Jacinto não gostou e disse que, uma vez que havia várias testemunhas, que lhes perguntassem como é que as coisas se tinham passado. O problema com esta sugestão é que uma parte dos passageiros, já muito irritados com a situação e vendo o tempo a passar, por vingança, declararam não saber quem tinha atropelado quem. Seria o pato que se pusera no caminho do chapa ou Jacinto que manobrara propositadamente para matar o animal? Perante estas afirmações, o grupo cindiu-se em dois: os pró-pato e os pró-Jacinto, que de repente se viu no meio de uma disputa em que era colocado em pé de igualdade com um animal.
Entretanto, e porque aos poucos se sentiam mais confiantes, os passageiros começaram a exigir dos polícias o seu dever de hospitalidade. Uns pediram água e, sobretudo as mulheres, exigiram ter acesso à casa de banho da esquadra. D. Guilhermina capitaneava esta reivindicação e, quando alguém ousou insinuar uma recusa, sob pretexto de que as mulheres sujavam as sanitas e o chão, ela avançou com ar ameaçador e saiu vitoriosa neste breve confronto. Conforme a discussão avançava foram-se pondo mais confortáveis, sentando-se nos bancos e nas poucas cadeiras disponíveis, aproveitando a ocasião para bisbilhotarem um pouco por toda a parte.
O bate boca aquecia mas, como não se adiantava nada com o assunto, um dos presentes sugeriu que se examinasse atentamente o pato, para tentar entender o ângulo do embate no vidro, o que poderia trazer luz sobre as responsabilidades respectivas no acidente. Acatando esta proposta, o oficial ordenou a um dos agentes que trouxesse o animal. No entanto, quando o referido agente se dirigiu à cela, deu conta do seu desaparecimento.
Esta nova ocorrência, da total responsabilidade dos polícias, uniu de novo os passageiros na comum acusação de que agora até nas esquadras havia roubos, porque um pato dificilmente teria inteligência para se evadir da prisão.  Instaurado de imediato um inquérito, apurou-se que um dos agentes largara entretanto o serviço e que, na ausência de outra explicação, só ele poderia ter levado o animal. Não querendo abrir mão dessa importante evidência que contava apresentar ao seu patrão, Jacinto propôs-se a conduzir os agentes até à casa do colega para tentar recuperar o pato. Como nenhum dos passageiros estava autorizado a ir-se embora chegou-se à conclusão de que o mais seguro era seguirem todos em grupo para fazer essa diligência, pois dessa forma continuariam sob vigilância policial. Ignorando-se os protestos dos que discordavam desta decisão, todos foram forçados a entrar de novo na carrinha, agora ainda mais apertados do que antes, pois levavam consigo os três agentes destacados para conduzir o inquérito. Felizmente que a casa do suspeito não ficava muito longe.
Camarinha Mavate, assim se chamava o presumível ladrão do animal, tinha efectivamente levado o pato. Note-se que ele não considerava que tinha roubado, mas simplesmente, perante o absurdo da prisão de um animal, decidira dar-lhe um uso mais racional, até porque o seu magro salário não lhe permitia muitas vezes o luxo de provar tais iguarias. Claro que quando lhe chegaram a casa a gritar e a acusar, Camarinha negou tudo. Só não conseguiu manter a sua versão porque lhe forçaram a entrada e, no quintal, encontraram o pato que tinha acabado de ser morto pela sua mulher, que se preparava para o arranjar para o almoço. O pobre animal terminava assim a sua breve mas aventurosa vida.
Jacinto foi-se abaixo com esta novidade e ele, que tinha adquirido na vida uma couraça que lhe permitia sobreviver nas condições mais adversas, sentiu-se de repente cansado de tudo. De que adiantava lutar, espernear, intrigar, se no fim de contas todos estavam presos nas teias de algo que não controlavam e que ao fim e ao cabo os mantinha no limiar da pobreza e os impedia de desfrutar da vida? Nesse momento teve saudades da sua infância despreocupada, de antes da guerra, lá na aldeia, onde a sua única responsabilidade era levar os cabritos a pastar.
Foi quando um dos presentes, não se sabe se por solidariedade ou por querer encerrar aquele assunto, propôs que se fizesse uma declaração sobre o que havia ocorrido e que ele, pelo menos, mesmo não sabendo se teria algum valor, assinaria a comprovar tudo. Este gesto teve a adesão geral e até Camarinha, na sua qualidade de agente, talvez por sentir que tinha culpas, declarou não se importar de deturpar um pouco as coisas e apresentar-se como mais uma testemunha do acontecido.
De novo na esquadra, desta vez para tratar das outras queixas, foi impossível recuperar o dinheiro roubado e descobrir quem fora o ladrão. Já praticamente ninguém reagiu, pois a manhã ia avançada e a maioria estava cansada e exasperada. A passageira molestada, também entretanto fatigada com tudo aquilo, desistiu da queixa. Finalmente foi dada permissão para que se retirassem e cada um se dispersou para seu lado, procurando encontrar outro chapa e já a pensar na desculpa que dariam aos empregadores para aquele atraso, na certeza de que um episódio destes dificilmente poderia ser apresentado como justificação. É que há pessoas que vivem como os outros nesta cidade, mas o mundo deles na prática fica a milhas de distância de coisas como estas que acontecem diariamente e que, afinal, constituem a realidade que sustenta esta metrópole.

2 comentários:

  1. Deliciosa escrita. Fina percepção da realidade e de seus ridículos.

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  2. Fantástico. Conseguiste convencer a MJA a publicar? Fantástico, é uma boa de uma notícia.

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