domingo, 13 de fevereiro de 2011

SE AS COISAS NÃO FOSSEM O QUE SÃO, II

HELDER MOURA PEREIRA
II/ Mesmo quando o poeta escreve no ponto de cozedura (num poema que, aliás, merecia ser todo citado), i.é num registo tão comovido e final: «As flores. Lembro-me delas/ como me lembro da cadela morta, do pai/ morto, da mãe viva, do teu cuidado/ em cuidares dela. E o teu dedo/ cortado da seiva do cacto, calejado/ de tesouras, descobre pequenos vermes/ na raiz. Aqui secarão meus ossos. (pág. 24)», plasma de forma serena o seu contacto com o pensamento agónico, sendo sublime a materialidade a que se entrega, pelo desprendimento, pela infrangível descida ao cerne.
Este é um lirismo a contra-pêlo que, sobrevoando o relato de incidências infelizes do amor, apesar do desgaste ou amarrotamento emocional, assim fecha outro poema, «É tempo de terminar com os adeuses/ escrevo enroscado na minha monotonia», porque, antecipa-se nos dois versos imediatamente anteriores: «Descubro a água na terra, aponto a vara/ e nasce em cada ramo uma firme haste». Ou seja: o sujeito lírico constata que a sua capacidade de amar se sobrepõe consecutivamente ao rotinado sentimento do luto, mesmo quando o amor não promete qualquer salvação:
«(…) Socorri-me do amor, pedi/ que me defendesse, mas o amor/ fez orelhas moucas, o mais/ que consegui foi que me deitasse/ sortes, sortes que disseram/ para eu contrariar a dúvida/ com outra dúvida maior.».
Falámos atrás de sujeito lírico, que não deve confundir-se com a pessoa do poeta, contudo as constâncias criam um sedimento, estrias, algo que permeia a sua personalidade poética, e no caso do Helder há um ror de janelas viradas para o golpe do amor, e é sem custo que divisamos nesta “possessão” e nas suas incandescências um dos grandes temas do poeta de Os Tranquilos Sobressaltos.
Outro aspecto interessante associa-se à dúctil performance da identidade poética, ao jogo de transferências (na sua acepção psicanalítica) e desdobramentos processados nesta poesia, onde nada acontece segundo uma linha. Quem lê este poeta desde sempre pode não detectar para além de uma aparente monotonia uma variedade multiplamente dobrável (o que aliás também acontece com outro poeta de talhe tão dissemelhante de Helder: António Ramos Rosa). Esta poesiapõe as máscaras e quantas vezes as palavras a conversarem entre si - o que não apenas electrocuta as certezas sobre quem narra e quem é narrado como funde as referências ao mundo real com o jogo da escrita, num feixe de ambivalências, pois como diria Agamben, nesta poesia, onde acaba a linguagem, começa, não o indizível, mas a matéria da palavra.
Vejamos o que se enfeixa neste conseguido fecho dum poema:
«Apesar de trivial o momento é um misto/ de tristeza e beleza, eu regresso a casa/ para ir buscar uma cadeira. Sentar-me-ei/ debaixo de uma árvore. Antes, porém,/ fico a ver-me fechar as janelas/ uma a uma, o que em mim é visto/ pensa que ainda não é uma despedida. /O que em mim vê não sabe o que há-de/ pensar. É uma criatura sem queda para/ a troca de impressões, a palavra coragem/ ainda continua a meter-lhe medo e encontra/ beleza no gesto de um homem visto/ de costas a fechar janelas e portas.»  
A estrofe organiza um travelling de recuo por uma psique fragmentada ou desencadeia uma mise en âbime? Quantas “personagens/figuras/duplicados” se enfeixam/desdobram nesse movimento? O descritor, aquele que vê no descritor, aquele que é visto, a quarta que a subtil passagem do verbo para a terceira pessoa (precisamente quando o descritor confessa que não sabe o que há-de pensar) introduz, e esta rede de olhares convergem num olhar que os reunifica: o leitor. Mas não estará este, por sua vez a ser observado? E o que é que trespassa todos estes olhares e os liga? Mais do que um sujeito-concatenador, uma energia: uma forma dinâmica de memória.    
E agora, perdoem-me: impõe-se o Porto-Braga.
                                                                                         (à suivre)

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