sexta-feira, 18 de março de 2011

AS LEIS COSTUMEIRAS E AS MÁS COMPANHIAS

mapplethorpe
Com esgares de um bacoco orgulho negro que unicamente se alimenta do ódio ao branco temos visto o angolano António Cortez - também conhecido por “Escurinho” ou por “Chico Adão”, o seu pseudónimo literário -, numa reportagem da RTP/África, a apresentar o seu livro "Direito Costumeiro e Poder Tradicional dos Povos de Angola".
Nada temos de antemão contra «as leis costumeiras», desde que razoáveis, em África ou em qualquer outro lado do mundo. O problema está quando o autor, exibindo um riso escarninho, nos assegura que as «as leis dos pretos não devem nada às dos brancos», porque, assegura, «não há nenhuma lei dos pretos que não esteja certa».
Ora acontece que os africanos não vivem hoje em sociedades particularmente felizes, particularmente desenvolvidas, nem de particular justiça social… ou em cuja equidade se possa aferir um efeito benigno das suas leis costumeiras. E entretanto veja-se a graciosidade com que «a lei costumeira» se sobrepõe à «lei positiva» na Costa do Marfim, em terras de Mugabe…
E para mostrar o lado negativo da «lei positiva», essa hedionda lei moderna, apresenta Chico Adão o mau passo, nas sociedades ocidentais, «dos homens casarem com homens e mulheres com mulheres», coisa que evidentemente, não acontece em África… perguntando desdenhosamente, «isso são costumes?».
Acontece que entre os brancos há imensas leis, costumeiras ou positivas, que não estão correctas, e que por isso estão permanentemente… sob suspeita, e em mudança. As sociedades modernas são sociedades em negociação permanente, que têm consciência da sua dinâmica histórica e de que podem melhorar… ainda.
O que implica que essas sociedades tiveram de abandonar moldes «essencialistas» quanto a uma suposta identidade, aos seus costumes e modos de vida. Coisa que Chico Adão, tão preocupado em achar uma ancestralidade para todas as manifestações costumeiras não parece aceitar.
Mas demos um exemplo. O mesmo Chico Adão parece ser o líder de uma tendência da MPLA que, à falta de coragem para levantar questões ao regime, instiga os deputados da oposição, da UNITA, a levantarem os problemas que eles não ousam. Nas sessões plenárias da Assembleia Nacional essa tendência mostra-se radical contra quem critica o MPLA, mas nos corredores tenta influenciar os oposicionistas a trazerem à liça os casos de injustiça que ela omite. Jogando sempre em dois tabuleiros.
Aqui temos um caso evidente de «comportamento costumeiro africano» absolutamente abominável e que não pode ser dado como bom exemplo de mecanismo social em nenhuma circunstância, lugar ou sociedade. Seja qual for a raça.
Quanto à matéria escaldante da homossexualidade ou da sua denegação africana, reproduzo um artigo que escrevi no Savana em resposta a um artigo do (agora) falecido Gabriel Simbine, irmão de Graça Machel (que foi esposa de Samora Machel e é a actual mulher de Mandela), e que patenteava um raciocínio que Chico Adão prontamente subscreveria:

Moçambique atravessa uma fase de retorno à mitologia das origens. O que sobressai nos discursos sobre a inexistência de homossexualidade entre os africanos, contagiados pelo diabo branco. O texto de Gabriel Simbine («O País», 16 de Fevereiro de 2007), que mão caridosa me deu a ler, ecoa esta perspectiva.
O cunho arbitrário de muitas das suas afirmações («a homossexualidade é o nível mais baixo do comportamento e atitude social de qualquer ser humano»: ultrapassará isto o domínio da opinião pessoal?) dispensa a utilidade de discutir se a homossexualidade é ou não uma «importação que chegou ao continente negro no pacote da cultura alienatória» derivada do «colonialismo e da religião ocidental», porque se acumulam os preconceitos onde deviam estar os argumentos.
Veja-se este exemplo: na Roma Imperial, muito antes do triunfo do Cristianismo, quando o que vingava era o politeísmo e um exuberante animismo permeava a vida dos cidadãos (aparentado ao africano, tirem-se as dúvidas no livro de R.M.Ogilvie, ’Os Romanos e os seus Deuses’), era vulgaríssimo que os homens fossem bissexuais. O imperador Júlio César era conhecido em Roma como «o homem de todas as mulheres e a mulher de todos os homens» (cf. o historiador romano Suetónio, ‘Os Doze Césares’). Portanto, uma sociedade profundamente animista acolhia pacificamente essa modalidade afectiva. Bom, em Roma havia registos, na África Sub-sahariana não... pormenor nada despiciendo para a seriedade desta discussão. Quanto ao supracitado cristianismo, pôs em acção uma máquina brutal para reprimir essa tendência sexual – e a liberdade recente em relação a esse tipo de amor (por que só se fala de sexo quando se fala de homossexualidade?) na Europa foi conquistada apesar da Igreja. O contrário do que alvitra Gabriel. Agora, o catolicismo durante milénios reprimiu a sodomia e a homossexualidade e afinal estas práticas persistiram: eis o que devia fazer pensar.
Corrijo outra afirmação errónea: a de que não há homossexualidade entre os animais. Vários estudos da etologia referem que os carneiros praticam mais a homossexualidade que a heterosexualidade. Veja-se o horror, nem “os anhos de Deus” escapam à conspicuidade sodomita!
Mas vamos ao que mais me choca no artigo. Primeiro: a natureza do negro original – impoluta, viril, abonada (e estamos na pura métrica), atreita à cópula (eles e elas – hum, garante o artigo que elas são um petisco) e às proezas físicas. O africano, diz Simbine, «não precisa de ser imitador (praticando a homossexualidade e o sexo oral) naquilo que ele sabe e pode fazer melhor que o colonizador europeu» (formulação científica). A palavra colonizador (-por que não ‘branco’?) não é convocada em vão: Simbine reproduz, na sua argumentação (?), os clichés e estereótipos inventados pelo esclavagista e pelo colono para definir o preto: bom para o trabalho braçal, o futebol, o atletismo, o basquete e uma fera na cama. Resultado: o negro pinoca melhor mas o colono pinocou-lhe tão bem a cabeça que agora só acredita no discurso do antigo amo e, paradoxos da liberdade, auto-retrata-se como um bom cobridor. Eis o racismo interiorizado, no seu máximo efeito.
Não passa pela cabeça de Simbine que os índices de performatividade dos negros no desporto na Europa, EUA e Brasil, têm como motivação o facto da comunidade negra desses lugares – de pouca equidade social -  ver nessas actividades uma hipótese para o sucesso social.
Houvesse nas sociedades referidas uma igualdade de oportunidades e os “bradas” começavam a distinguir-se também noutras actividades «técnico-científico e sócio-culturais» e baixariam a sua densidade humana no desporto de alta competição. E será que não seria preferível, em vez de ficarem confinados ao hip-hop, ao futebol e ao sexo?
Simbine não parece entender que o distingue o homem não é a natureza mas a cultura. O leão também truca-truca a leoa, mas o erotismo – uma operação da inteligência, da imaginação, dos códigos do desejo atinentes a cada cultura - é exclusivo do homem. Será por isso que, segundo explicação de Simbine, «o europeu tem um organismo frio (...) e não encontra satisfação quando pratica sexo normal entre o homem e a mulher (e) na falta do melhor (...) pratica a homossexualidade, o sexo oral, etc?» (outro axioma científico).
Contudo, não se trata apenas de Simbine ser contra a possibilidade do humano ampliar a versatilidade das suas sensações ou a labilidade das suas emoções. Como heterossexual assumido outra coisa me incomoda e muito no seu artigo: o fedor a “polícia de costumes”! Cabe lembrar: antes do 25 de Abril, em Portugal, a homossexualidade e a sodomia eram tabus e fonte de estigma. A homossexualidade “cresceu” com a liberdade – parece-me um preço justo.
Por isso, como medida de sanidade, empresto ao Gabriel Simbine uma reflexão final, do filósofo e sociólogo catalão Xavier Rubert de Ventós:
Ser moral, para mim, é recordar sempre a importância daquelas opções que não tomámos para nós: daqueles valores que, talvez necessariamente, sacrificámos, mas que nunca esqueceremos nem pretenderemos reduzir a subproduto dos inerentes ao nosso estado ou profissão. Podemos optar pela vida ascética, mas então o que faz falta é respeitar o valor da sensualidade. Podemos optar pela vida intelectual, sem deixar de realçar a importância de tudo o que se passa fora do campo das ideias. Frente à tendência para fazer o mundo parecido e à nossa medida, a moralidade consistiria antes em tornarmo-nos nós parecidos com o mundo; não em moralizar o mundo, mas sim em ‘mundanizar-nos’”. 
Aí está uma coisa que exige coragem: não querermos que os outros sejam iguais a nós e respeitarmos as opções que não tivemos. Um caminho para a liberdade e o respeito mútuo.
Esqueça o jogging, Gabriel Simbine, estude e pense.          

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