quarta-feira, 16 de março de 2011

A CERIMÓNIA DO CHÁ/ 1

hokusai

Estou tão chocado com o desenrolar dos acontecimentos no Japão que decidi fazer uma série onde partilho convosco o meu Japão.
Será uma forma de “o revisitar”.
O Japão é de há anos para cá o meu sonho inatingível, o lugar onde gostaria de morrer, e por isso tenho por aquela terra e a sua cultura uma particular afeição: bebamos um pouco do seu reflexo.
Começo pelo Kôan.

O kôan é como um relâmpago na noite, um curto-circuito na lógica, e servia para os mestres Zen desenredarem nos discípulos a ilusão de que o mundo é linguisticamente articulado, truncando de imediato as suas tendências para o dualismo, as generalizações e a conceptualização.

Aí onde o jogo recíproco do «é» e
       do «não-é»
       não cessou de uma vez,
nem mesmo os sábios
      podem dizer alguma coisa.

Mas o Kôan, que o Zen usou como método, é uma operação universal, como se vê por este exercício que o Peter Brook costumava propor aos seus actores: vai para o canto da sala e não penses no urso branco.

Ser “trabalhado” por um kôan exigia um esforço inaudito: o discípulo deve romper com os hábitos do seu pensamento discursivo de modo a sintonizar instantaneamente a intuição do mestre, que lhe pergunta, por exemplo: «se te cortarem as mãos como vais bater palmas?».

O discípulo deve esforçar-se por ter sempre presente no espírito o kôan mas sem pensar nele, pois quando mais o analisa intelectualmente mais se afasta do resultado desejado. Pelo contrário, só esvaziando a sua mente de todo o pensamento é que, subitamente, por um excesso de tensão sem tensão, se desencadeará uma espécie de cataclismo mental que lhe provocará a «re-estruturação iluminadora», e aí captará a chave do kôan.

É preciso que se diga de antemão que, para o Zen, de que procede a prática do kôan, o consciente o inconsciente não são mais do que palavras, pois há entre ambos um contacto constante com um continuum percebido como totalidade; depois convém saber que o Zen insiste muito na distinção entre saber ver, que é instantâneo, e a experiência do olhar, uma operação que transcorre no tempo e que é investigadora.

Leiam-se agora dois versos do poeta Amadeu Baptista, extraídos do seu livro A Arte do Regresso:

«Acredito que chegas à ausência desta praia
para despertar o mar».

Algo lateja de imediato na consciência do leitor, segrega nele uma inquietação. O paradoxo, ou o oximoro, activado pelos vocábulos ausência e despertar confluem numa significação inesperada, mediante a qual sujeito e mundo se encaixam, coincidindo. Não estão mais face a face, mas em fusão.
Afinal, só a súbita presença de quem estava ausente restitui ao mar a sua banda sonora - antes o mar era uma criança autista e surda à interacção, surda aos seus próprios murmúrios.
Como é que se chega à ausência de uma praia, perguntarão os racionalistas. Provavelmente de pára-quedas, como os anjos. Mas recordo que esta questão é similar ao enigma que é discutido há décadas por físicos quânticos e monges zen e que se resume ao seguinte kôan: «quando não há ouvido humano por perto, o galho da árvore que se parte faz barulho?». Este enigma é o que desperta nos versos de Amadeu: «Acredito que chegas à ausência desta praia/ para despertar o mar

Que tipo de memória desponta nessa intersecção, onde mar, audição, sujeito, poema e leitor se tornam um, é já outra questão. De momento, só quis mostrar como poesia e kôan podem ser afins.

Quem estiver interessado em aprofundar o assunto, o ideal seria consultar uma recolha clássica que se intitula Transmissão da Lâmpada. Mas é muito difícil, eu nunca a consegui, nem sei se existe tradução para alguma língua ocidental. Portanto aconselho os dois ensaios que tenho e que se podem encomendar: «El Koân Zen», de Toshihiko Izutsu, Madrid, Editorial Eyras, 1980 (há também edição francesa da Librairie Artheme Fayard), e o livro essencial de Jacques Masui, «L’exercice du Kôan», Fata Morgana, de onde extraí os kôan/poemas que traduzo em baixo:   


Reencontram-se, os dois amigos
     que riem às gargalhadas:
atapeta-se o bosque,
     de folhas mortas.


Para poder marchar
    sobre o grande Vazio,
deve transpirar
    a vaca de aço.


Ela (a verdade) é como um tigre
mas com numerosos cornos,
         como uma vaca
mas desprovida de cauda.


Um punhado de poeira
contém todo o universo;
quando uma flor se desvanece
o mundo inteiro se desvela.


Uma borboleta
         obscurece o céu;
um grão de poeira
       cobre a terra inteira.


Todas as águas reflectem
            a lua;
não é a montanha
       mas as nuvens que a rodeiam.


A espessura dos bambus
    não trava a corrente do ribeiro;
pode o cume das montanhas
     estancar as nuvens no seu curso?


A vida é como uma espada,
     fere mas não a si mesmo;
como o olho que tudo vê
     mas a si mesmo não pode.


Para perseverar a vida
     é preciso destruí-la;
logo que ela é destruída,
     desponta do seu subsolo o repouso.


Levai o vosso cavalo ao longo do fio da espada,
escondei-vos no meio das chamas.  


Por longos longos anos mora o pássaro
     na gaiola;
quem voa hoje
entre as nuvens?


Penetrando na floresta
   ele (o sábio) não incomoda
   un talo de erva;
penetrando na água
    não lhe provoca uma ruga.


Há um tesouro
       ao fundo das montanhas;
aquele que o não procura
      encontra-o.


Ter um inimigo, é receber
      uma graça;
ser feliz, é ser posto
      à prova


Pára o vento mas as flores
     continuam a cair;
um pássaro canta, a montanha
      guarda o seu segredo.


A água que bebe a vaca
       muda em leite;
a água que bebe a serpente
       muda em veneno.

2 comentários:

  1. Lembrei-me, a propósito do Japão, de uma entrevista do Roland Barthes, em que declarava que o Japão era um país em que se sentia muito bem, mesmo sem conhecer a língua. Um daqueles sítios em que podia visitar tudo o que lhe sugerissem.
    E o Japão faz notícia, infelizmente pelos piores motivos.


    Tavares B.

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  2. O poeta é como o príncipe das nuvens. As suas asas de gigante não o deixam caminhar.

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