terça-feira, 8 de março de 2011

HORA DE ALMOÇO, NO HOTEL SANTA CRUZ/Annie Girardot



Chamava-se Annie Girardot e bastava ter feito o Rocco e os seis irmaos, do Visconti, para ter ficado preso ao seu rosto, que tinha o condão de nos dar a verdade em poucas sílabas. Também o seu sorriso, simples, ia directo ao ponto como o voo de uma ave. 
Agradava-me, pronto. Tivemos o azar dela ter nascido trinta anos antes. Morreu a semana passada. Porque não.
Levei anos a pensar neste conto, que imaginava muito mais complexo e rebuscado, antes de ter vertido esta versão quase tchecoviana, numa tarde de chuva.
Simples e eficaz, espero, como o jogo da representação em Girardot. É ela a mulher do conto. Está inédito, como os outros anteriormente postados.

HORA DE ALMOÇO, NO HOTEL SANTA CRUZ
Argentina não se perdoa estar naquela situação. Victor estende ligeiramente a coxa, encaixando-a entre as suas pernas, e ajeita por cima a sua perna esquerda, pelo exterior da sua coxa direita. E exterior a todo este espectáculo, ou no cerne dele, Argentina olha, raso ao seu ventre, o pénis de Victor com o sentimento de ter colocado a si mesma uma armadilha da qual não descortina meio de escapar-se.
Ela nem sequer está muito húmida mas ele entra nela e matuta, como o jingle que em pleno miradouro chega de nenhures e martela, não deixando apreciar o vale. Sem uma mudança de ritmo, uma alteração da respiração, um descompasso, uma palavra inopinada, uma ternura: repisa o tema.
Victor enlaça-a e Argentina ouve a bola de basquete no piso de cimento do campo de treinos, nas traseiras do prédio. Argentina agarra-se ao sincopado ritmo da corrida dos miúdos, aos seus gritos, ao sorvo de ar na trajectória da bola, ao repique da bola, saltitante, suspensivo, no arco do cesto; procura adivinhar o posicionamento dos jogadores, a sua evolução no campo, a natureza das faltas, o jogo das mãos no despique do esférico, enquanto Victor a embucha poro a poro, nem reparando que ela está meio seca, tão seca como o baque da bola quando rebenta.
Quando ele se retira ela está na mesma, obstruída, e o mínimo prazer que desfrutou desceu sobre ela como uma espécie de decalcomania, que lhe não pertence.
Sentam-se na cama e fumam em silêncio, o silêncio dela tem maior calado que o dele, porque ele não trava fumo, da mesma maneira que executa o amor sem atentar muito no outro. É caso para dizer: ele nada leva a peito.
- Vais logo à festa da escola do teu filho? – Pergunta ele.
- Por acaso, é a mesma em que anda a tua filha… - Silvou ela, cortante; enerva-a a forma como ele se mete de fora em tudo:
- Tu já eras assim quando namorávamos na universidade?
- Assim como?
- Já te metias de lado, em tudo?
Ele reage:
- Contigo, não me meti de lado mas de frente.
- Vives para te descartares, é impressionante! Aposto que fodeste para aliviares os tomates…
Ele olha-a surpreendido pela rudeza da linguagem dela. Torna-se defensivo:
- Não percebo o que queres dizer!
- Calculo…
Vestem-se lado a lado, tapando-se com a mudez.
É a segunda vez que se encontram, desde a Festa da Páscoa na Escola, onde deram um pelo outro após doze anos de afastamento, de desconhecimento mútuo. O marido dela fora à Suécia a um convénio e ele mostrara-se uma companhia agradável, solícita. Até os levara a casa.
Atraíra-a o tanto que não mudou nele, é quase caricato: com quarenta anos, conserva um fácies de rapaz. Só os olhos descaíram um pouco. Mas também os seios dela haviam declinado, após a mama de dois filhos, e estava mais larga de cintura. Por isso sentiu-se lisonjeada quando ele mentiu, garantindo que estava na mesma.
Da primeira vez, atribuiu a si mesma o desajuste, sentia-se um guardanapo apanhado do chão.
Ele pagou com cartão dourado, estava bem na vida. Ela, um palmo atrás dele, olha a recepcionista nos olhos: faz questão de mostrar que está à altura da situação.
Separam-se à saída, com um beijo furtivo na face, quando ela lhe agarra o pulso, debilmente, enquanto a voz lhe sai impassível, como aço:
- Lembras-te porque é que acabámos?
- Não... Mas está tudo na mesma.
Ela olha-o uma última vez, e sente uma leve náusea. De rosto fechado anui:
- Tens razão, está tudo na mesma.
E mira o relógio, às quatro tem de ir buscar o filho.
 

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