quarta-feira, 20 de abril de 2011

ANTES QUE CHEGUE A NOITE/ PANERO TRADUÇÃO,


PALAVRAS EM DESALINHO PARA UMA DESPEDIDA

Para onde foi o amor, anuncia a rádio,
com a Bette Davis, num cinema de subúrbio,
e também eu pergunto, inutilmente te pergunto,
para onde - se alguma vez, entre nós, realidade teve.
Indomada a solidão firma as suas raízes
e, canção que vem com o vento, irmana-nos no ódio.
Porque podem o cavalo e a serpente dois anos conviver
que nem por isso há de ter neles morada a ternura,
a noite guardará os seus relances de insónia e destruição.
"Quand vous serez bien vieille", escreveu Ronsard,
e Henry Cristophe suicidou-se com uma bala de prata,
formoso e absurdo gesto: palavras que só a Beleza selará.
Nunca a mesquinhez ou o engano serão vencidos pela idade,
nem prevalecerá a prata sobre o sangue
no desesperado estertor final.
Para onde foi o amor, oh tu, que sempre amaste,
donzela pura confiada às presas da fera.
E dias deixaste passar, e horas transparentes,
onde cada sílaba exumou o seu peso de verdade.
Ilusório domínio da tua vida,
não quiseste então, nem uma só vez o quiseste,
o tutano último das palavras,
o que nu e virgem se levantava entre elas.
Mais cómodo e alegre foi aprender aquilo que fácil se oferecia 
com valor bastante para ser leiloado numa festa.
Triste é ser juiz e mais ainda ser verdugo.
Como um cego, agora, vagueio na memória
tacteando os frágeis muros onde a sombra derramaste,
esbarrando na tua lembrança, mesmo à beira do que já não existe,
infantil e torpe. Treme nas minhas mãos um punhal.
Para onde foi o amor.
Eis as palavras para uma despedida.


FÓSSEIS E MINERAIS

É possível que seja verdade o que dizem:
estes fragmentos de rocha quebrada
sorriram um dia e verteram lágrimas.
Nesta escura mancha de carvão,
provável brasa, agora, de estufa ou braseiro,
habitaram, povoados e rumorejantes ramos,
pássaros - agudos incansáveis trinares,
expostos à luz ardente da primavera.
A vós, pedras, contemplo, esquecendo fastidiosas descrições,
fósseis cobertos de fino pó, surpreendentes formas.
Quero crer que nem tudo está morto,
que um latejo de longínqua irmandade nos convém ainda.
Viro as costas a uma cautelosa vigilância
sinto por um instante a vossa presença mineral
aquilo que talvez tenha sido
um trémulo peito de mulher ou áspera e vingativa mão,
fugaz cansaço, incompreensível eternidade.
É difícil aceitá-lo à luz do pálido esplendor
que a cortina coou, imaginar os vossos desejos,
as desajeitadas carícias, os vossos gritos de rebeldia face ao destino.
Passam rapazes de olhar enjoado,
estudantes apressados, intratáveis guardiões.
Volto, perseverante, a observá-los. Desejaria falar convosco
mas onde encontrar a palavra, a cálida sílaba que embeba
de tremores humanos o vosso coração disforme
- cerrada matéria emudecida. Ouve-se logo uma campainha,
soam palmas imperiosas,  é chegada a hora do adeus.
Enquanto lentamente caminho para a saída,
para o sol nublado de uma manhã de Dezembro,
penso em vós, insensíveis próximos,
talvez nunca vencidos pela terra,
pois dela sois certeira semelhança.
Imagino-vos mais poderosos que o tempo tão temido,
porque espíritos, plantas, hoje
me dais testemunho do seu inútil domínio.



NÃO HÁ PALAVRAS

Tocas um corpo, sentes-lhe o repetido tremor
sob os teus dedos, o cálido andamento do sangue.
Observas-lhe o lânguido amolecimento,
as suas sombras corporais, o seu desvelado esplendor.
Não há palavras. Tocas um corpo; um mundo
enche agora as tuas mãos, empurra o seu destino.
Estira-se o tempo nos pulmões,
silva como um chicote rente aos lábios.
As horas, o instante, detêm-se,
extrais aí a tua pequena parcela de eternidade.
Antes foram os nomes e as datas.
a história tão clara e lúcida de dois rostos distantes.
Mais tarde, aquilo a que chamas amor,
talvez se transforme em promessa arrancada,
muro erguido que pretende encerrar
o que só em liberdade pode ganhar-se.
Não importa, agora, nada importa.
Tocas um corpo, nele te fundes,
apalpas a vida, real, comum. Já não estás só.



O QUE FICA DEPOIS DOS VIOLINOS                                        
                                                               Xavier Abril
Quando te esqueceres do meu nome,
e o meu corpo for apenas uma sombra
esbatendo-se nas húmidas paredes daquele quarto.
Quando já não te chegar o eco da minha voz,
ou o entoar das minhas palavras,
peço-te então que recordes: houve uma tarde,
umas horas, fomos felizes juntos e foi estrondoso viver.
Era um domingo em Hampsead, com a frágil primavera de abril
a espontar nos rebentos dos castanheiros.
Em direcção à igreja apressavam-se monjas irlandesas,
meninos, endomingados e entorpecidos, pela mão.
Em cima, por detrás da sebe, na verde penumbra do parque,
dois homens beijavam-se, ao ralenti.
Chegaste tu, sem que me desse conta apareceste e começámos a falar,
tropeçando de riso entre as palavras, gaguejadas
no estranho idioma que nem a ti nem a mim pertencia.
Depois fizeste-te pequena nos meus braços
e a relva acolheu a tua escura cabeleira.
E, sem demora, a cinzenta escadaria, comprida e estreita,
a alfombra de cinza e gordura,
os teus pequenos e desolados seios na minha boca...
Sim, às vezes é simples e aprazível viver,
quero que te lembres, que não te esqueças
do passar daquelas horas, do seu esperançado fulgor.
Também eu, longe de ti, quando perdida na memória
estiver a sede do teu sorriso, lembrarei, como agora,
enquanto escrevo estas palavras para todos aqueles
que num momento, sem promessas nem dádivas, puramente se entregam
e no desconhecimento de raças ou razões se fundem
num corpo único, mais ditoso,
para logo, aquietado já o instinto,
se separarem, cumprindo o seu destino,
sabendo que, talvez só por isso,
não foi a sua existência vã.



DE NOVE DE MAIO

Daqui, destas áridas paredes de aluguer,
entre estranhos móveis e pesadas cortinas
que a chuva e a bruma pretendem abafar.
Daqui, do hostil refúgio de um copo de genebra
volto, preciso de voltar àquela tarde.
Àquele pequeno bar, à sua ténue luz,
à posse segura de umas mãos, de uns lábios
que nunca voltarão a ser meus.
Foi um dia, tempos depois de nos separarmos para sempre,
ou pelo menos de o termos prometido, entre gritos
e insultos, na cólera bruta do álcool.
De novo juntos, sentados frente a frente,
ouvíamos o monótono repisar de uma canção
nos rostos cerrados e no fumo parado sobre as mesas,
em atitude distante repetíamos os gestos do costume,
as banais comédias de defesa ou cansaço.
De súbito, um sorriso, o leve roçar de uma outra pele,
talvez o doloroso tremor das lembranças, defrontou os nossos olhos
e por um instante, a cálida exalação da ternura
que não encontra palavras, estreitou os nossos corpos,
amparando o seu humilhado mendigar sem descanso.
Só depois tudo acabou definitivamente,
e foi a vida mais poderosa que nós,
mas agora nada importa além daquela tarde,
daquele momento irrepetível  de união,
da tibieza de uma pele, de uns lábios, que só o recordá-los
protege esta noite o meu coração, dando-me forças
para persistir no erro de viver até amanhã.



ENTARDECER EM  PIE DE LA CUESTA

Mas como pode ser verdade tanta beleza
e eu poder ainda emocionar-me assim
com o antigo estupor, remota adolescência defraudada,
com que agora assoma esta luz implacável e me cega.
A mesquinhez da nossa vida,
as suas horas negras e os seus torpes factos,
tudo num instante se enevoa e quase se dissipa frente deste mar,
diante destas ondas, enormes muros de cristal selvagem,
delgada chama em sua branca e vivaz luz, espuma
de um azul extenso, tenaz e gretado.
Derramada intensidade, poderosa e ávida,
que arranca a areia da praia,
e funde a sua solidão na nossa solidão.
Entardece, com uma incrível e apetecível lentidão,
prolongada amplidão de mundo em redor,
frente ao bramido surdo do Pacífico
entre loucas palmeiras enlaçadas
e um fumo de erva que abre as pupilas.
Vermelho e roxo e outra vez vermelho e lilás em fundo,
pintada realidade que dardeja os nossos corpos
e banha os nossos rostos de uma cor impossível.
Desolada beleza fugitiva, por isso mais formosa,
e a tua figura solitária, contraluz do crepúsculo,
medida humana, necessária e cálida.
Vagarosos minutos, segundos que são horas,
a ver morrer um sonho, o seu grande pássaro ferido.
Todos os dias se repetirá o prodígio
e clamará a luz e hão de dobrar-se as ondas
sobre a areia prófuga de Pie de la Cuesta.
Mas já não estaremos e as acaso estivéssemos
distinto seria: latido inútil, amargo assombro do fracasso.
Bem está que nunca mais vejamos como agora
a agonia mais viva, os últimos latidos
de um mundo de beleza desmoronando-se cego
sobre apinhadas ondas, promontórios de espuma,
eterno corrimão entre a terra e o céu.
Como depois de uma inesperada noite de amor
ou como a lembrança de algo já perdido
ao acabar olhamo-nos incrédulos,
mais vazios e sós, mais desconsoláveis.
Com profunda dor a sua intensidade fere-nos,
possessão do mais simples e inexplicável mistério:
imagens de morte, obstinado sabor de vida,
nos teus olhos escuros vi chorar um deus.



MENSAGEM DO ZOPILOTE
(Malcolm Lowry)

Um cão uivou no descampado da noite
e o crispado som, como eco de cristal
- garrafa ou copo – espedaçado de repente,
perdeu-se engasgado entre as árvores
do barranco que há por trás da rua Humboldt,
sob o Céu impassível de Cuernavaca.
Longínquo, outro cão respondeu ao seu lamento
e brilharam os seus olhos com um estranho fulgor.
Daí, de uma rua escura que não esqueço,
além no Albaicín, frente ao Alhambra.
Pela manhã, era o 27 de junho de 1957,
foram os pacíficos habitantes de Rije
testemunhas de um insólito acontecimento:
um grande pássaro negro cuja espécie ignoravam,
com asas de chumbo e bico ensanguentado,
voou sobre as suas casas e desapareceu nas nuvens,
sem que alguém soubesse a sua origem ou o seu destino



UM ESTRANGEIRO

Produz uma certa melancolia
uma tristeza decadente - literária sem dúvida -
como certas canções de entre-guerras
ou páginas perdidas de Drieu de la Rochelle,
ver um homem só, isolado e distante,
na barra de um bar com uma decoração internacional.
Nessa idade imprecisa, tão imprecisa como a luz ambiente,
em que já não é jovem nem é ainda velho,
embora brilhe já nos seus olhos o timbre da derrota,
quando com um gesto estudado acende um cigarro.
As muitas imperiais e as camas de sobra,
a barriga proeminente que a camisa inglesa apenas disfarça,
o tremor, não de imediato visível, da mão que segura o copo,
a sua parte de naufrágio, ressaca da vida.
Um homem à espera sabe-se lá de quê
que, enquanto aspira o fumo, olha com declarada indiferença
as garrafas defronte, os rostos que um espelho reflecte,
tudo com a especial irrealidade da fotografia.
E mais triste ainda, um longo e reprimido suspiro,
ver no fundo desse copo - caleidoscópio mágico -
que esse homem és tu, irremediavelmente tu.
Não resta então mais nada senão um sorriso céptico e distante
- aprendido muito cedo e útil malditos anos depois ,
de um grande trago acabar a bebida
pagar a conta enquanto pedes um táxi,
e despedires-te de ti com palavras banais.   


MEDITAÇÃO IDIOTA NA HORA DE NOS DEITARMOS SÓS

Se sem conta disseste e repetiste
que o teu único amor é um saco de viagem,
por que te queixas e protestas,
enquanto fitas o tecto, sobre a tua cama solitária.
Vítima, juiz e afinal verdugo,
ainda consegues sentir-te a tremer se alguém te quer,                                                                                    
mas escolheste tu, de certa forma, o teu destino,
e agora deves pagar o preço justo.
Tu, que à exaustão pronunciaste "desejo-te"
para imediatamente zombares da tua própria expressão
que esperas, a quem pedes em vão?
Se, quando encontras alguém que compartilhe os teus dias,
as tuas noites mais terríveis , a tua soma de fracassos,
temes pedir "por que não ficas comigo, para sempre?"
ainda que tudo não passe de uma frase em que não acreditas,
que fim será o teu, o que aguardas tu?
E se afinal te queixas das grotescas farsas
que amiúde, inúteis, constróis,
com frívolas histórias e palavras de pataco,
que pretendes,  que pedes da vida?
A vida não é um jogo, capacita-te,
e se há algo de inegável é que envelheceste.
Conforma-te, aguenta-te, e não peças milagres,
que o vodka te acompanhe no silencio e no sono.
Aos pés da cama, como uma cadela no cio,
a morte, desvelada, dá-te as boas-noites.


ANOS DEPOIS DE SEPARAR-NOS
                                         Eram duas estrelas sobre um cenário, cada uma actuando diante                                             
                                              de um público de duas pessoas: a paixão com que jogavam a                                                                                                                                                     
                                                                mascarada criava a realidade.
                                                                Francis Scott Fitzgerald

Restam sim cidades, paisagens, sensações de calor ou frio,
a neve de Nova Iorque, o sol implacável de Cartagena das Índias.
Restam quadros perdidos em museus ou em casas,
como postais de outro tempo, sem brilho,
conversações com amigos ou talvez inimigos,
encontros que por um momento deram valor à nossa vida,
tardes de touros, filmes, canções,
copos vazios, cães, casas abandonadas, bugigangas mexicanas.
Resta um cenário perfeito,
com todos os detalhes cuidados até ao limite,
para representar a obra tanto tempo ensaiada,
a parelha estelar enfim triunfadora.
Mas hoje, todos o sabem, nem tu nem eu actuamos.
E uma cenografia, por brilhante que seja,
nada é sem palavras, sem um alento humano.
É só um vazio imenso ou, sejamos modestos,
uma cartolina cinzenta onde irreflectidamente se cola
- nem vaias nem aplausos – os bilhetes da estreia,
velhas fotografias que a ninguém interessam, de dois rostos idos.
E as luzes apagam-se e fecham-se as portas.


UMA LONGA ESPERA

Alguém te espera numa esplanada de Veneza,
enquanto se perde, afugentada pelos açoites da chuva,
a musiqueta de uma pequena orquestra.
Alguém te espera no caloroso camarote de um navio,
vendo o amanhecer sobre os minaretes de Alexandria.
Alguém te espera, com um copo na mão junto a um corpo 
- a chuva martelando de tédio as vidraças -
numa casa de Hans Road, em Londres.
Alguém te espera, despido, num quarto Art Nouveau, em Paris
- entra uma luz esborratada atravessa a janela  -
Alguém, numa esquina dourada pelo sol,
perto de Chapultepec, na cidade do México.
Alguém te espera, noutro camarote caloroso, fitando
o poente sobre as ondas do Caribe.
Alguém, junto a uma lareira apagada, num andar de Bogotá.
com o sopro gelado, num passeio de Hudson, em Nova York,
num terraço de hotel de Taxco
e noutro terraço, onde ladram cães, em Madrid.
Alguém te espera na noite de Granada e na madrugada de Veracruz,
palmilhando Lisboa desde o alto da Serafina
e São Francisco desde Russian Hill.
Alguém – ao tempo, ao tempo - te espera
entre os velhos muros de uma casa da Astorga
e fazendo amor na areia de uma praia perdida.
Alguém te espera, com impaciência, espera notícias tuas,
em vários e tão parecidos apartamentos, em monótonos quartos de hotel.
E tu devias avisá-lo, dizer-lhe por uma vez a verdade,
que não poderás voltar, que já não tens tempo,
que é melhor cancelar o encontro para sempre.
Mas não o farás e ele continuará à espera,
sonhando cada sítio como se tu estivesses para chegar,
repetindo as mesmas frases nos envelhecidos cenários.
Até que um dia se canse de esperar-te
e se capacite de que não voltarás, que talvez tenhas morrido.
Nesse dia, antes de adormecer, quando amaldiçoar
todo o tempo perdido, a sua paciência esgotada,
poderá ler - escrita nas paredes - a esperada notícia da tua morte.



MENSAGEM DE ANTÓNIO A CLEÓPATRA

Elogiem outros
a tua beleza adormecida,
a suavidade da tua pele em repouso,
a medida perfeição dos teus membros.
Não foi para isso que vim,
vim tão somente penetrar-te
pelo peito e pelo dorso,
como um punhal atravessa 
a água transparente
e se funde e se transvia
no poço sombrio.


MENSAGEM DE CLEÓPATRA A ANTÓNIO

Não aplaudas a minha beleza,
outros já o fizeram.
Penetra-me pelo peito e pelo dorso
faz-me pulsar a vida na cintura
e que enlaçados, o teu e o meu corpo,
possam deter o furor bárbaro do tempo.
Mas, se chegar o dia em que o tempo nos detenha,
não te lamentes, oh meu estúpido beberrão,
e cai com valor - já Cavafis o escreveu -
nesse poço sombrio.



GALERIA DE FANTASMAS

" Dá as boas-tardes ao senhor Eliot"
- o meu pai e aquele espantalho bem-educado
sentados nas suas poltronas de couro, falando num estranho idioma -
no número 102 de Eaton Square. Londres 1947.

Ali também,
um ror de dias, manhãs frias de colégio,
ensonado, levado pela mão,
"Luís Cernuda gosta muito de ti",
e a última visita ao Harrods,
enquanto embrulhavam o seu presente de despedida,
um barquinho pintado de vermelho.

Em Madrid, adolescente,
numa tarde chuvosa de Novembro,
Salvatore Quasimodo,
                     Davanti al simulacro d'Ilaria del Carreto,
precisão e paixão reveladas numa voz,
sob aqueles bigodes de comparsa de ópera.

A casa de Vicente Aleixandre - já escrevi sobre ela -
afirmação de algumas palavras,
encontro com um destino
ignorado, persistente, definitivo.

O fantasma enterrado,
recuperado em Cúcuta, calor e moscas
de Jorge Gaitán Durán,
incendiada lenda destruída, ressuscitada.

Reencontro de mortos
rostos apagados, repetidos
capítulos das memórias que não escreverei.

Em Barcelona - 1983 - um meio-dia de espessa primavera
abre-me a porta de sua casa, apoiado numa bengala,
Joan Vinyoli, e falámos, frente a uns canecos,
de Cernuda e de Eliot.
Tudo começa, se perde, recomeça.

Desmoronados edifícios de uma velha ternura,
sombras frágeis, sílabas secretas,
persistentes garatujas num papel manchado
fogos fátuos que a memória convoca,
galeria de fantasmas que esta noite percorro.


A DUSE NA PIAZZA CAVOUR

Robert Creeley discorre inteligentemente sobre a sua poesia
e Dario Bellezza disparata contra os poetas estrangeiros
- os convidados deste curioso festival -
enquanto sustenta a supremacia dos poetas romanos,
certamente a sua - mesquinha polémica provinciana.
Mas ali, naquele cenário, não está a poesia, nem nunca estará.
A poesia é resgatada por ti, nesta noite tórrida de finais de Julho,
sem de mim nada saberes, nem sequer que escrevo,
sentada sobre os teus oitenta anos, com o cabelo
meticulosamente apanhado, os teus medalhões,
o teu gatinho numa gaiola,
e as tuas mãos erguidas recitando D'Annunzio,
numa esplanada deste bar deserto da Piazza Cavour.
Sei que esperas, enquanto me contas elegantes mentiras,
que te pague o copo, que te dê umas quantas liras,
o que não sabes, não o saberás nunca,
é a que ponto me fizeste feliz.
" Dizia-me D'Annunzio", repetes, inventas, recitas
e ouvem-se os seus versos na praça em silêncio
enquanto o criado começa a retirar as mesas.
Fingida Duse desta noite louca,
carrancas de proa, rindo-nos tu e eu,
sem querer trouxeste-me, de verdade, a poesia,
com a sua mistura de fábula e sonho, de fantasma e fracasso,
com a sua obscura verdade que nunca se define.
Manhosa Duse, muito obrigado por tudo,
ergamos este último copo, num brinde a D'Annunzio
agora que se perde no ar o eco da tua voz
e através das árvores chega um pouco de brisa.
Que as nossas vozes roucas de tantas gargalhadas
e o teu rosto pleno de magia, de paixão e farsa,
nos ajudem um pouco neste absurdo destino,
neste estranho esconjuro que nos afirma ainda vivos.


LEITURA NUM QUARTO DE HOTEL

Pouco resta daquele quarto de hotel, da neve colada às vidraças,
de ti e de mim nos gestos do amor, da sombra do teu corpo na cama,
do ruído de Nova York, daqueles dias  que a memória inventa.
No entanto, este livro, um paperback, agora em ruínas,
teima em recordar-nos, símbolo de outra época.
É curioso pensar que esta capa suja,
este papel manchado, estes poemas,
foram mais poderosos que nós,
mais resistentes que a tua pele e a minha.
Contudo, nesta noite de verão, tantos anos depois,
as suas páginas não me levam a Spoon River e às suas gentes
- desolação, estupidez, fracasso
sonhos e mentiras, um rasto de ternura -
a nós, mas somente a nós conduzem, numa noite de fevereiro,
nus e ridentes com o livro nas mãos
sem saber que também ali - desolação, estupidez, fracasso -
estava escrito o nosso inexorável destino.

        
ABUTRES GUARDIÕES

Ernesto Hemingway viu-os no céu de África
e escreveu sobre eles palavras memoráveis.
E logo um asqueroso estúdio de cinema
os fez voar, mensageiros da morte em technicolor.
A fanada intensidade do texto, a falsidade das imagens
que, nesta noite absurda, um televisor repete,
poderiam supor ao menos o fim do enguiço, o quebrar do malefício.
E, no entanto, neste quarto impessoal, de uma grotesca elegância,
de um qualquer hotel de uma cidade anónima,
sozinho, através do écran, contemplo a sua grave presença,
o seu olhar inquieto no encalço do pútrido,
o corrompido símbolo das suas asas erguidas.
Imagens de um sonho, fantasmas da vida,
aturdindo os meus olhos que se fecham, aborrecidos,
sabendo que eles velam, que esperam pertinazes,
com sujas plumas de sangue, na cama do lado.


NO BAR DO HOTEL

Neste bar, onde tudo tem um ar de suave decadência
- do barroco vienês de Gustav Klimt -,
evoco esquecidas recordações de Borges
 - uma lápide na porta assinala as suas temporadas aqui.
Quando de súbito, uma voz áspera e dura, vinda das sombras
interrompe o meu arrastado e melancólico solilóquio,
ça va, ça va, repete e repete em distintos tons,
que graves ou sibilantes se perdem no ar,
sem que consiga perceber - não se vê vivalma - a sua estranha procedência.
Por fim, por detrás de uma coluna, lá descubro a sua origem:
na sua gaiola dourada, um gaio verde, de pescoço amarelo,
em tom de desafio, tagarela ça va, ça va,
e as cores brilhantes do pássaro engaiolado
sugerem outra imagem, um tópico já gasto,
a recordação de Oscar Wilde que aqui bebeu e morreu.
Estar cansado traz penas e a natureza plagia a arte
no salão vazio do entardecer,
enquanto eu bebo e questiono duas sombras ou símbolos
e essa voz, quase humana, me responde ça va.



REGRESSO A HOLLYWOOD

Ali, na sala da funerária, rodeado de pouca gente,
maquilhado e de fatiota " Dir-se-ia que está vivo"
- só as suas mãos traíam a erosão dos anos e do álcool -
Scott Fitzgerald esperava o comboio de regresso a casa.
" Pobre filho da puta" sentenciou Dorothy Parker diante do ataúde.
Depois, despacharam o caixão para Baltimore
para acabar de vez com a comédia.
Mas ao lá chegar, surgiram as complicações,
e pese a cuidada maquilhagem e a vistosa fatiota,       
o bispo católico recusou-lhe a benção e a terra
- era notória a sua imoralidade e pecaminosos os escritos -
e assim, depois de retocado o batom dos lábios
e de lhe cobrirem as mãos com a bandeira da União,
selaram o caixão e levaram-no de volta ao comboio.
Desde então, a todo o comprimento e largura do país,
erra o seu cadáver, sem fim, sem fim, detendo-se
uma por outra vez - infrutuosamente –
à beira de algum cemitério esquecido,
ou exibido em feiras de aldeia.
Hoje, em toda a América, é famoso o comboio de Scott
e as últimas notícias que tive dele
era que tinha acabado de passar pela estação de Denver,
de regresso a Hollywood, ao êxito e à fama.

 

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