quinta-feira, 14 de abril de 2011

CONTRIBUIÇÃO MATEMÁTICA PARA UMA TEORIA DO RAIO

a miúda dos meus sonhos quando eu ambicionava ser ladrão de bancos. a foto é de man ray
Pediu-me o João Paulo Cotrim que lhe faça uma micronarrativa para ele incluir numa antologia sobre a pobreza. Enquanto o pássaro não vem à rede, lembrei-me de como em criança, pobre como o catano, nunca me conformei com a penúria que me havia calhado e fantasiava sobre assaltos a Bancos ou sobre os pergaminhos perdidos da família - que caíra da aristocracia miguelista até ao operariado mais profundo. Essa coisa da educação para ser “pobre mas honrado” só pode atrair crianças sem imaginação. Eu por mim estou seguríssimo que só a escrita me desviou do roubo ou das negociatas menos asseadas. Menos que isso era alinhar no jogo das decapitações. O que não me era possível, olhando para as gengivas desdentadas da minha avô, desde que aos 35 lhe acontecera algo até ao fim dos seus dias. E então, enquanto vigiava os Bancas e anotava as entradas e saídas dos funcionários, contava aos meus amigos a triste queda da casa dos Cavaleiros D’Argot, de que me julgava o último dos avatares, e justificava assim os meus pés calçados com sapatos de cores diferentes. E de tanto contar o momento da queda de todos pergaminhos da família no chão mais empedrado, soube-a de cor. É assim:   


Queda da brasonada casa dos Cavaleiros d’Argot? A que lapidou a minha avó, Judite de Noronha, na tarde do dia 5 de Novembro de 1945, um lustro depois de três cruzes da sífilis terem cavalgado o fígado ao marido amantíssimo.
Recomeçemos. Queda e agravo do destino até então inconsútil dos Faro e Noronha - século e meio após o pundonor com que, contra o cão espanhol, no Buçaco, o primogénito da linhagem, João Baptista Faro e Noronha, batalhou pela promoção a brigadeiro? A que vexou a minha avó, Judite de Faro e Noronha, na tarde do dia 5 de Novembro de 1945, cinco anos depois de enviuvar por acção das três Carpas que desemaranharam alma e vísceras ao habilitado consorte.
Tentemos de novo. Despejo e desamparo dos Dias de Carvalho? A que devorou o sorriso a minha avó, Judite de Faro e Noronha Dias de Carvalho, oitenta anos depois do sogro, o General Henrique Dias de Carvalho, ter pontapeado a primeira gema brilhante em Lunda e caçado um elefante em cujas presas se lavrava um insólito tratado de astronomia quioco; quase a seis anos de enviuvar do primo que a desabrochou como mulher - na tarde do dia 5 de Novembro de 1945.
Até então era uma viuvez contristada, sem o alarde dos corvos nos despojos da batalha. Uma viuvez sem transvazo, de olho na proporção.
E havia alguns vestidos, fora de moda, mas com a dignidade das lembranças, trajáveis numa necessidade, uma recepção, um chá em casa de amiga na Lapa, um baile em casa do comendador Fontaínhas.
A minha avó, educada para a escansão dos alexandrinos franceses e os voltejos da valsa, apesar do ar compungido dos seus três filhos menores – a mais velha tinha cinco anos à morte do pai – foi incapaz de fazer-se à vidinha, como sói dizer-se, e entregou-se aos nervos mais predadores. Os que a prostavam na cama seis meses por ano e a projectavam eufórica, alçada à fantasia mais descabelada, nos restantes. Estava amalucada, dizia a vizinhança, sofre dos nervos, retorquia a família, é bipolar, diria hoje um psicólogo ao primeiro relance.  
Portanto, não obstante a fraca ração que a pensão de tenente na reserva de meu avô lhe assegurava, como viúva, nesses anos em que a II Guerra Mundial fazia galgar o custo de vida, sazonalmente, irrompia a esperança na casa. A esperança de voltar a casar-se, de retomar o direito aos chás de sociedade ou a entrada nos chalets da Cruz Quebrada sem ser por caridade, a esperança de olhar os filhos e não os culpar pelo seu entrevamento prematuro. Seis meses de tudo ou nada – nos quais o seu corpo voltava a ser mais do que um mero acto de fala.
E era uma senhora capaz, a minha avó, Judite de Faro e Noronha Dias de Carvalho, não propriamente bonita mas com laivos que a poderiam tornar atraente e livrá-la da taxonomia em que a viuvez tende a acomodar-se.
Até aquele dia: 5 de Novembro de 1945, dia do Tatoo Militar, cujo desfile desceria a Rua do Arco de Carvalhão. As janelas do terceiro andar onde a minha avó vivia com os filhos e as irmãs gémeas eram um posto privilegiado: plantadas na desembocadura da curva para o plano descendente que o arco oitocentista rematava, consentiam uma panorâmica mais demorada. Naquele dia, dada a ansiedade que carregava o ar, teriam feito bom dinheirinho pelo aluguer das vistas, se o destino não fosse tão caprichoso.
A rua engalanou-se de cobertas e tapetes e a minha avó e as irmãs desencantaram ao fundo do báu um tapete de arraiolos, que havia resistido até então à sanha dos “penhores”. Por certo um dos mais vistosos, pelo menos nos prédios em redor, e o aparato subiu aos olhos das três irmãs, que se postaram radiosas à janela.
O piriquito da vizinha de cima não se calava e a minha avó, contra a aflição das gémeas, mais afeitas ao decoro, pôs-se a assobiar árias de ópera (estava num dos daqueles meses) à compita com o pássaro, dobrando-o por três secos sem resposta, a avaliar pela ovação das vizinhas.
E de repente alguém das janelas do quinto gritou: «vêm aí!». O rufar dos tamores e as cornetas retumbaram, circenses. E cresceu como uma onda o barulho da marcha. Breve se viram, as primeiras flâmulas e, atrás, os batalhões de comandos. Num verde que os olhares bruniam, como se as boinas tão simetricamente encaixadas nas cabeças fossem de pedra. Seguiram-se os marinheiros, num branco impoluto. Por felicidade os rostos dos militares, hieráticos mas florescidos, viravam-se para aquele lado da rua.  Depois dos marinheiros, a artilharia, com três canhões a fechar o batalhão.
Recortou-se a primeira flâmula a cavalo. E atrás, garbosos, com brilhos nos galões e nas esporas, os oficiais de cavalaria. Os cascos dos cavalos crepitavam nos paralelipípedes da rua com uma cadência tão disciplinada como a verificável na valsa – extraordinário domínio dos cavaleiros sobre a montada. Talvez tenha sido o que fascinou a minha avó: a conformidade dos cascos.
Uma pontada de vento ameaçou arrancar da cabeça o chapéu de um capitão, que desmanchou a pose fincando a palma no topo da cabeça. Um rumor de simpatia sacudiu a rua. Terá a minha avó Judite apreciado a prontidão com que aquele gesto rompeu a solenidade do ritual, sem perder pitada de postura? O certo é que sorriu. E surpreendida ficou porque o capitão-de-cavalaria devolveu, no exactíssimo momento, o rosto preso ao dela, ainda que a 15 metros, no plano ascendente da rua. Uma coincidência. A minha avó desfez o sorriso. E por que não? Voltou a sorrir. E o capitão-de-cavalaria, a 10 metros da janela, acompanhou-a na disposição. Duas vezes? Observou-o bem. Era celta como o falecido, sob o chapéu despontava uma leve ondulação dos cabelos, tal qual o mil vezes apetecido,  o rosto é que lhe parecia mais comprido. Mas o sorriso não lhe ficava atrás. O capitão-de-cavalaria estaria a cinco metros e decidiu tirar a limpo. Ou não foi consciente e unicamente não conseguiu evitar, sorrindo de novo, com toda a expressão da sua alma? E ele retribuiu-lhe. Era indubitável: era-lhe dirigido aquele sorriso caloroso, de quem sabe segurar um pássaro na mão sem o estrafegar. Ao perto o capitão-de-cavalaria melhorou muito.
E no clamor daquele sorriso nupcial desprendeu-se-lhe a placa, a de cima – fora sempre fraca a dentição na famíla – e a minha avó, Judite de Faro e Noronha Dias de Carvalho, viu-a, à prótese, ao ralenti, galgar metro a metro no vácuo – a partir de qual metro teria ele dado por isso? – e estilhaçar-se sem remédio no empedrado.
Quantas galáxias se consumiram nessa explosão? A minha avó nunca mais teve dentadura. Os vestidos foram comidos pelas traças. As filhas acasalaram no proletariado mais profundo. Os Cavaleiros d’ Argot, os Faro e Noronha e os Dias de Carvalho nunca foram reabilitados.
E assim nasci eu: deserdado.

2 comentários:

  1. António, não me saltou a placa, mas ri-me desalmadamente. Sem querer, constato que não há melhor palavra que se te aplique do que desalmadamente, pois até Almada te tiraram, deserdado !

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  2. Quantas vezes o prazer dado ao leitor - neste caso a mim - tem um preço assim alto. "Maravilha", digo, sem me lembrar que é um fruto luminoso nascido do escuro em que as perdas se acumulam.

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