domingo, 10 de abril de 2011

OZO /INÉDITOS


Ando a preparar uma mudança de casa, o que dá sempre uma volta profunda a papéis e cadernos, para poupar no peso e na tralha a levar. E redescobri dois cadernos ao fundo da despensa que continham vários esboços do meu confrade OZO (cf. post de Fevereiro, Derrotas Sexualmente Transmissíveis, sobre a origem deste amigo que me coabita a sombra). Aqui vos deixo estes inéditos de Ozo. O poema final é político, um da dúzia desse género que o camarada produziu. As fotos são do josé cabral:


ELVIS HOME

1
Tem o semblante de uma tristeza
que nunca conheceu tômbola,
       nem em sonhos,
                                   e viu
seis cavalos tártaros
urinarem
sobre o único óvulo que semeou.


3
De cabeleira verde,
irradiava tal esplendor
por entre a fumaça e o tilintar
dos flippers que aquele enorme
ziguezagueante balcão
pendia
da sua luva
ama-
re
la.


4
Quando a despi
no vértice que crisma
        a noite, no lugar
     onde as águas se juntam
ao sorvo das éguas
e as pernas se abrem,
             loquazes,
tinha um donuts.


5
Ainda se o bigode fosse a mielas
              mas era só dela
a tipa era mão de vaca e não
emprestava nem um bocadinho
ao mano,
               uma cara encovada
e sem um pêlo para amostra,
como um cu
                enfiado em si mesmo.


6
Pega no giz com a ponta dos dedos
e fá-lo chiar na cabeça do taco
depois flecte as pernas num trapézio,
enquanto o cigarro ao canto da boca
esborrata o batom.
Eu embico no brandy
e reflicto: sem pressão
         o cérebro
amolece
e o tempo relaxa-se
como dois seios sem soutien.



MÍNIMA MORALIA
“Eu, que sou montanhês, sei o que vale
a amizade da pedra para a alma.”
Leopoldo Lugones
1
a pedra do meu sonho
acordou comigo,
ao meu lado na cama.

e, o que é espantoso:
deslembrada.

7
Perséfona em pó.
Medeia em cristais.
Lésbia em pomada.

quem pega
nestas matronas?

na minha rua
só o vento sabe latim,
e grego sequer as sombras.

9
“um homem baleado
morre quase sempre por
envenenamento de chumbo.

se não for em excesso
a bala é quase inofensiva”.

insistia o Gilinho
a rilhar o tremoço.

12
na primavera, se acaso
estivessem desocupadas,

as mãos sondavam o primeiro
falo que encontrassem
engomado –

falo de formigas
que não se privam
de ser
obreiras.

16
- o nevoeiro desponta
quando a Nossa Senhora
repousa os seios
em terra.

- tens a certeza?

- pelo menos foi
o que a minha mãe
me disse.

17
se conseguires encostar
a orelha à tua sombra
ouvirás o mar

mas tem de ser
com os pés no ar.

18
‘antes de ti o meu corpo
estava cego
como a lâmpada que nunca
conheceu casquilho’.

20
aos vinte: esfregamo-nos como martas,
criamos filhos traquinas
e vivemos felizes para sempre.

aos quarenta: maceração íntima,
chega-se a tua pele à minha mão
como um trovão que se afasta.

22
o silêncio?
faz tempos que não o vejo.

24
era como se eu afogasse
a pedra na mão.

Podia lá imaginar
que o olho dele também
não sabia nadar.

25    (os sítios indevidos)
- senhor juiz, no momento
foi impossível furtar-me
a medir trinta passos
na vereda estreita do sexo dela,
que aliás se dilatava à passagem.

- e o senhor não ouvia o culto
no santuário do Cristo Rei?

- estava vento e o arvoredo
só me deixava ouvir
uma briga de andorinhas.

29
ir a despacho
no teu peito nu:
a promoção que as íris
tanto aguardaram.

31   (explicação)
a corça
que naufragou
nos meus braços
não me torna
infiel.
havia uma disposição
da natureza,
um grumo de nostalgia.
como um mau-olhado
que era preciso
extirpar.

ate gozei
com culpa,
eu seja ceguinho!

41    (ouvido no café Branca de Neve)
‘Xai-xai, a minha terra, ficou
de tal modo coberta com as cheias
que se afogaram as antenas de televisão.

para Deus será um pequeno refluxo,
para os meus pais foi maior
que a etimologia do Diabo
e suicidaram-se, ela
de bronquite, ele de débito.

quem adivinharia que Xai-xai
era um nome hemorrágico.’

42
deposto. o olhar
sobre a bica.
icemo-nos
à boca dela.

47
o sujeito é o homem
que inverte
o boato em carne:

roubado de um teste.

48    (um cabo-verdiano, antigo emigrante nos States)
‘sou poliglota de ascensores.
no mais sou ignaro.
mas nem o Pessoa, que era muitos,
conheceu tantos elevadores como eu.’

49
do tornozelo aos ilíacos
é perfeita. e aí encaixam-se
duas torneiras que só repelem
quem não gosta de água.

50
desencaminhada.
a estrada é um ermo.
a noite podia perfeitamente
roubar-lhe de esticão

tudo o que tem
mas prefere passar-lhe
a língua no bulício
das nádegas, nas coxas,

cujo ébano mergulha
o escuro em jardins
suspensos.

e eu,
à janela, roído
de inveja.

57
abomino os poetas que quando escrevem
meu amor apõem de imediato meu ódio

o amor não é uma vergonha nem um mérito:
a chuva que se precipita na rampa

raramente sobe. e o ódio é o vício
de um especialista que se tornou

jornalista. tomba neste momento
o opus 45 para chuva, vento e jacarandá.

58
não é inverno,
é prosa.

59
a congeminada artrite das palavras,
a sua mordedura,
cálida,
e por vezes absurdamente
tolerante,
leva-me a confiar
mais na escalada dos teus seios.

60
não te sigo. vou
no mesmo caminho.

mas de árvore
p’ra árvore

as minhas raízes
nomadizam-se.

63
repuxei o lábio a pedir-lhe
não te vás. felizmente
mostrou-me que a decepção
tem folha perene.

agora nem morta voltará
a infiltrar o mindinho
entre o meu prepúcio e a glande.

64
o que eu desejaria que perdurasse?
a nudez, no interior da razão.

um viático que não exigisse
um saldo de vilanias, que a crispação

do hip-hop aceitasse o caminho
de água do jazz, e que nada

aplanasse o odor de outro corpo.

66
instrução
para surdos-
-mudos:

leiam
em
braille.

67
o esgalgado galgo
da florista
é desossado
em corrida
e não
chega a gozar
o silêncio
da chuva.

68
a mão dele, que tresandava
a tangerina, afagou-lhe
a cabeça e depois os seios
como se – avaliada
a redondez da copa –
sopesasse os frutos.

70
empanturra-se de ostras
e arrota baixinho.

só os pobres podem
olhar o céu
com interesse.

essa ervilhaca
a que chamas alma

é como a raspadinha,
mínima moralia:

o mais fugaz petisco
traz o vício.


A VIA HERÉTICA

Que Deus me perdoe mas
o caule desta imperial lembra-me
o antebraço de Nossa Senhora
e o ouro da sua energia,
fluida,
    nas frinchas
           do Seu Amor.

Que Deus me perdoe
mas a base do copo
lembra-me uma glande
que uma lanceta
       vitrificou

e quando o elevo e rodo
observando-lhe a transparência
assalta-me a visão
daquela pila
      de urso,
num filme polaco,
      O MONSTRO,

      que à vista
da mínima réstia de tornozelo
duma condessa
que tomava banho
no sangue das cem virgens
que mandara matar,
      pulsava
expulsando num jorro
             a Via Láctea,

que Deus me perdoe
as coisas que me ocorrem
matutando
                 n’Ele.  


OSSOS DE BORBOLETA

Sei encontrar os nexos
      mas não multiplicar os anexos,
      a ponderosa cheta.

Jura um amigo que o dinheiro é fêmea
e faz várias ninhadas por ano,
        há-de confundi-la c’a chita
 - se também ele defraudou a sorte!

mas conheço centenas que incapazes
de fazer um nexo
         fazem trilar a chita
            com promessas de grilo.
Perdão, a cheta,

O que me enoja no arranjinho, na auto-estima
       da calinada, no implícito ao fundo
do mais reles esquema,
        é a escalada da luva,
proporcional
à escala
da ignorância sobre o ADN:

um grilo não fecunda uma cheta,
a mentira não torna menos pretos
       os sapatos brancos do janota.

Algo tremendo penetrou na minha vida,
uma lente que não faz ver
mas na verdade acende o olhar
                             - tramou-me.

Escreveu o Maquiavel, um man
de poucos amigos:
                   a ideia é quebrar o real,
confundir os sentidos,
desmoralizar as aparências,
e o ilógico é o segredo de uma ordem
           que se exprime em segredo.

E fascina-me o descaro
com que dos ossos se faz gelatina
           e se lhes escarra o tutano,
esvaziando os sentidos,
            em nome do mais brutal fake
- que a mola se chame metical,
                      é um exemplo.

Ah, a desrazão geométrica!

Eu sei como se cede
          e se enrolha a honestidade,
sei como mente o asno amarelo,
como se perde a vergonha nadando à cão,
sei os trilhos onde os habilidosos
           depenam os flamingos
para prometerem petróleo
                      ao povo,
e como se devolve as palhaçadas
               com a putrefacção do riso.

Eu sei, é tão fácil agarrar uma ilha
pelos cornos da administração,
                   com luvas de veludo,
ou fazer de um porto o viveiro
                   para as minhas rãs.

Foi sempre claríssimo para mim
que estamos juntos na manha,
no relax,       don´t do it,
falta-me é o sangue mafioso dos italianos,
                    e o inescrúpulo de Shaka
                     - tenho ossos de borboleta.

Só isso       um pendor demasiado humano
para fazer dos princípios trapézio
                 afocinha-me no asco,
e fragiliza-me o humor
quando me caiam a sombra
e me oferecem pulseiras de cobre para o bio-ritmo
            e um fô by fô para calar a opinião  
            - arre, tenho sangue de borboleta.

De que reino é a mole formada na pedra?
             A sua noite anda a oeste,
florescendo a alba a sul – como é
     grande o embaralhamento dos pontos cardiais!
E em que lento desapontamento deixei eu de saber dançar
            conforme a música?
Em que farol capotei o carro?

Ai Mbique, a perda de realidade
não só compra como pode dar lucro,

e coitado de mim que faço os nexos
               e tenho ossos de borboleta!




4 comentários:

  1. Cruz credo!

    Os leitores do Desinformação Seletiva já foram devidamente alertados por mim:

    "Tirem as crianças da sala, lacrem com piche bento o fiofó dos cães, do papagaio e das piabas!

    António Cabrita soltou há pouco na praça uma oceânica récua de poemas do nefando Ozo!

    Corram logo a lê-los ao Sul*, antes que as Raposas busquem abrigo na puta que pariu!"

    Beijos

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  2. Li alguns lá no Desinformação Seletiva. Vim aqui conhecer mais. Às vezes é uma sensação (estranhamente gostosa!) de pedra atingindo em cheio a face.

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  3. Marcia , que bela coisa exacta que voce disse!

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