terça-feira, 17 de maio de 2011

FORTUNATA CR'ITICA/ TEIXEIRA DE PASCOAES

foto de amadeu baptista: o outro lado das nuvens
Impelido por razões de trabalho li outro clássico, desta vez o poema Senhora da Noite de Teixeira de Pascoaes, que no volume consultado, antecede Marânus, que é na verdade o que preciso de reler, por estrita necessidade. Tive o prazer de uma língua que encontra a mitra do peru acabadinha de sair do congelador. É arrepiantemente perdulário o Pascoaes, pior que o Cardozo do Benfica, que falha e falha e falha golos diante da baliza vazia. Apliquei-lhe a tesoura, numa técnica invasiva de respiração boca-a-boca (e viva a insolência): aqui vos deixo a silva, o lote de salvados, seguido de 4 rugas que redigi nas margens do poema.

SENHORA DA NOITE
1
Aí vem a meia-noite,
rosa de sombra
que, em botão, é estrela.

Aí vem a meia-noite,
um lácteo derrame anuncia
a Sibila, o Poeta, o Rouxinol.

Aí vem a meia-noite
a derivar para o distante
jardim do mar.

Casto alvor da neve,
sob os pés, lá vem –
e silva o vento enamorado
e preso da sua trança.

Seu agitado leque
é o vento sul,
muito além ressoa.

Ouve-se Orfeu
e a voz magoada de Euridice
que surge dos arvoredos,
- limosa a carne.

Não tarda, a triste dama,
cinza gelada, múmia de som,
aí vem – a meia-noite

(Lembra a asa viva
dum clarão sobre a terra
cismática dum monte).


2
E a noite
subiu comigo aos cerros
do Marão. Alto sorriso,
lúcido, marmórea luz,
solta folhagem
de azul desfeito.

E a aurora,
sentindo sobre a fronte
a minha alegria –
mesmo que seja de mortes
a minha vida – com o relâmpago
da sua comoção
me trespassou.

Aí vi
a semente que quer ser árvore,
o plinto de mármore
na nuvem que se espanta,
como o frio se embebe de calor
e a seiva arde
na corola,
na sua bainha tão verde.

E aquele riso
claro e fecundo
dava um ar infantil de paraíso
à velha e férrea idade deste mundo.


3
Em grande magia, o mar.

E a senhora da tarde, enamorada,
dirige-se ao poente
que lembra estranha Babel,
                       incendiada.

                       E vem da serra
ignoto sol escuro.

Cotovia da sombra,
                        o mocho pia
- o mocho é treva.


4
Engelha a noite, a velhinha.
Mal pode andar
                  tão pálida e fatigada.
Deita-se e dorme.

Dorme, dorme, sossegada,
que o teu sonho é madrugada.   



SENHORA DA ALBA

1
Sem dar azo a mais destrinças,
           posta a alma ao lume
(bem ou mal passada?),
                                          a treva
encarvoa-se de silêncio.
Vem a alba e lembra-me:
                                 como cintila
a minha mão no teu dorso!


2
Tudo se penetra:
no fundo é a mesma coisa,
só conta a parte de amarelo
                 que existe no azul
dum céu que transpira
no sonho de ser esmeralda.
Esgarça-se a nuvem, é uma questão
                           de sintaxe,
só as nuvens arrumam os cimos,
pois sem sintaxe não há emoção duradoura
                           nem é a cerejeira
             reminiscência
nas costas da cama que te ouve
             em blandícias.


3
Por que escrevo, se a chuva não pára?
Sou um plebeu em ascese para o zero,
                                      um esqueleto
                que joga aos dados
as letras que ditarão o seu nome.
Por que escrevo,
                            se perdura
o grande silêncio sem patos
bravos
            em rajadas sobre o lago?
Escrevo porque sou a camisola
            de alças
                     no teu corpo.


4
O quatro tem uma perna
de ganso.
                  Chapinha.
A barriga parece a minha.
                  O rabo é o teu.
Está grávido do cinco,
                  Senhora da Alba.

1 comentário:

  1. Desculpe o meu sumiço, Cabrita. Muita correria burocrática e ainda uns dias passados em Minas.
    Recentemente fiz um longo comentário aqui e, ao clicar no enviar, surgiu o famigerado ERROR. Faltou paciência para reescrever.

    Não passou em branco suas referências a mim, à Elza e ao blog. Obrigado.

    Abraço

    Vou te mandar por e-mail um convite. Atraente, espero.

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