segunda-feira, 9 de maio de 2011

LEMBRO QUE NÂO ESQUEÇO, Ó ÓSAMA



LEMBRO QUE NÃO ESQUEÇO, Ó BIN LADEN


Na Líbia continua o caos, e, apesar de tudo, sou mais contra a ineficácia da Nato, do que a favor da sua ingerência, sobretudo porque é tardia e hipócrita. Vejam como estou dividido.
E não tenho a certeza se foi a melhor opção transformar Bin Laden num mártir.
No essencial, tenho um drama com o islamismo actual: lamento profundamente que os seus moderados não sejam mais veementes e constantes a criticar os seus radicais, como se estivessem a jogar em dois tabuleiros – salvaguardando a ambiguidade suficiente para se poderem acomodar sem sustos, caso os radicais triunfem em toda a linha.
E o problema não está só no modo como se trata metade da humanidade (as mulheres) nesse universo, e no tratamento pouco urbano que recebeu Laura Logan, uma jovem repórter americana que aterrou no Cairo para relatar a libertação do povo egípcio do ditador Mubarak e que imediatamente a seguir ao seu “directo” foi violentada e violada pela turba cuja energia positiva exaltara - uma mole humana pouco habituada a cabelos louros e soltos;
eu lembro outras coisas:
lembro-me da intolerância com que os talibans destruíram os grandes Budas de pedra no Afeganistão, coisa que devia ser inconcebível no mundo actual;
lembro-me da expressão de pânico que vi no olhar do jovem ladrão apanhado pela polícia à minha frente, em Sanaa, capital do Yémen, e como senti a minha mão esquerda latejar e ficar roxa, só de imaginar o golpe do cutelo;
lembro-me da “decência” com que Henrique Galvão se recusou a saquear o cofre do Santa Maria, em 61, no primeiro desvio mundial de um transatlântico para operações de propaganda a uma causa revolucionária e do “pragmatismo” materialista, da perda de dignidade dos “revolucionários”, que se seguiu, em nome dos fins e da eficácia. 
lembro-me da criança de três anos de sorriso cândido que quis fotografar no Yémen e como foi esbofeteada brutalmente pelos familiares porque tinha mostrado “a perna” ao ocidental, que estava, evidentemente, diante do fedelho, com uma erecção cavalar;
lembro-me, em Aden, na Praia do Elefante, da turma de raparigas pré-universitárias que, à minha frente, foi para dentro de água com o tchador “calçado” (vocês desculpem, mas aquilo não é uma coisa que se vista), vinte e cinco cabeças de fósforo à tona de água, por causa da presença de um estrangeiro na praia e do decoro, que Bin Laden aprovaria, face ao evidente estado de sobreexcitação cavalar do perverso europeu;
lembro-me de milhares de inocentes mortos pelos seguidores de Bin Laden, em atentados pelo mundo, sem lhes ter sido perguntado a opinião;
lembro-me da limpeza com que Bin Laden se prestou a ser:
- o álibi para a cruzada americana e as suas atrocidades,
- o álibi para a política bárbara de Israel,
num mundo que ficou mais inseguro e selvagem e que nada aprendeu com o exemplo de Ghandi (aliás, é esse o problema dos homens: não aprendem);
lembro-me que as únicas estratégias de combate de Bin Laden unicamente fomentaram o ódio e o incremento das armas;
lembro-me que o islamismo de Bin Laden não é o de Rumi, Saadi, Ibn Arabi, Omar Khayyam, Ghalib, Muhammad Iqbal, Badr ShakirAl-Sayyab, Jabra Ibrahim Jabra, ou Salah Stétié; que o Islão destes não é o pesadelo climatizado da Al Quaeda;
que Abdelatif Lâabi e Tahar Ben Jelloun continuam exilados e que os melhores livros dos autores magrebinos continuam a editar-se em França – por que será?;
lembro-me do miúdo de doze anos que, junto às colunas do palácio da Rainha de Sabá disparou, nas minhas costas,  uma rajada da sua kalachnicov, como forma serena de extorquir mais dez dólares ao turista – e associo isso à bestialidade das crianças-soldado que continuam a polvilhar o continente africano, sem que ouça uma palavra sobre esse fenómeno nos fóruns internacionais;     
e por isso me ocorre ficar à rasca sempre que vejo pessoas à minha frente cativas da mais rudimentar simetria, e que diante da ameaça real dos efeitos da Globalização e do grande cinismo económico, em nome da diferença, estendem os seus afectos na justificação de regimes autocráticos e de figuras sinistras, invariavelmente em nome do mal menor; pessoas que não conhecem o valor do três, e que não precisamos de ser por uns ou por outros mas que podemos ser contra uns e outros e outros… e desconfiados em relação a todos os que aspiram ao poder (mesmo os que nos são simpáticos), pois nada disto é necessário e já houve formas mais sadias de encarar o poder.
O sistema rotativo de cargos públicos na Grécia pré-clássica e na América pré-hispânica impedia o monopólio de poder por parte de uns indivíduos cuja mesma «vocação política» bastava para os desqualificar. Indivíduos que no dizer de Aristóteles, «se aferram aos cargos públicos como se tivessem contraído uma enfermidade que só pode curar-se com a sua continuidade no poder». Como diz Xavier Rubert de Ventós, o filósofo a quem saco esta informação, o poder de controlar e decidir sobre a vida dos demais nunca deveria nunca estar na mão de alguém bastante doente para o procurar.
E, na Grécia, quando estes «doentes» se apegavam ao poder e faziam perigar a livre circulação do mesmo, era-lhes aplicado um sistema de segurança: o ostracismo. Atenas e as cidades democráticas de Argos desterravam por um tempo interminado todos aqueles «que buscavam afincadamente o poder e com ele se deliciavam, quer pela sua riqueza, quer por suas numerosas relações ou por alguma outra influência política»; o «ostracismo» era um mecanismo contra a consolidação do poder político.
Ou quando nos povoados índios de Oaxaca alguém acumulava excessivas riquezas, o povo decretava a sua ruína ritual nomeando-o patrocinador da festa do santo padroeiro, patrocinato em que o agraciado devia gastar a sua fortuna se não quisesse ver-se desprestigiado ou acusado de impiedade e bruxaria.
A questão essencial, torna Ventos, localiza-se aqui: somos ricos o suficiente para permitirmos os ricos, bastante poderosos para permitirmos os poderosos? As velhas instituições dos cargos giratórios, o ostracismo, o potlach e o patrocinato pareciam responder à consciência de que o poder não nos há-de salvar, mas é aquilo precisamente de que devemos salvar-nos.
São exemplos simples de muitas coisas que podemos aprender com a História e com a Antropologia e que talvez nos permitam outros modelos para a organização política e as suas manifestações.
Por isso hesitei antes de falar de Bin Laden, que não me merece qualquer requiem,
e julgo que a forma mais airosa de relatar o seu fim será pela ironia, a mesma com que Tuca Zamagna, no Desinformação Selectiva, esclarece que os americanos converteram Bin Laden a Iemanjá.

      

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