quarta-feira, 29 de junho de 2011

DEZ QUATUORS



LÍVIDA NEVE

Sim, o pavor faz-me revirar os ossos
que chiam gemebundos como as lágrimas
de cão que limpam as ramelas à lívida
neve, que nunca exagera.


O SEGREDO

Adejava de terra em terra
sobrevoando as linhas restritivas, lagos
e lameiros, em busca do segredo
que o liquefazia numa árvore.


O QUE SOBRA À PORTA

Eis a porta que se abre para dentro
de si mesmo, contundida, à cata
de orifícios que a aliviem de estar tão absorvida
pelas sensações que lhe deixaram a batente.


TATUAGEM

Corria atrás do vento
para lhe tatuar no dorso a toutinegra.
corria atrás do vento, escorreita
e nervosamente prismática.


COM GANAS

Já o passado exibia ao ombro
a minha pele esfolada
e daí, se não se importam,
com ganas me escapuli pró presente.


O BETUME

O betume impermeabiliza.
O nome não. O vento também não.
Há três dias que os pássaros comentam isso:
algo impermeabiliza o que não sabem designar.


DA INVISIBILIDADE

Lá se haviam estabelecido beduínos.
A bem dizer, lá continuam a brotar os beduínos,
ainda que ninguém o saiba. Perguntei à miúda
que me serve a cerveja - nem cerejas nem beduínos.


PULSAM

Quando a fenda se rasga no horizonte
a dança compõe a aridez da paisagem
e as tuas pernas, expansivas,
numa fímbria de saliva, pulsam.


DELAGOA BAY

Não há surfistas em Delagoa Bay. E, nela, rara-
mente mudam as copas dos coqueiros em hélices
destemperadas, como oráculos no vento.
Por isso se calaram os tambores.


O BEIJO-DE-MULATA
                                                               à dita
Reincidente, floresceu o beijo-de-mulata,
naquele canteiro. É um milagre, numa terra
que continuamente se revolve, mais presta
à erosão que uma fieira de cometas.

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