sábado, 25 de junho de 2011

O MAL/ uma tradução inédita de Christian Bobin


Isto anda mesmo tudo ligado, eu tinha acabado de escrever, durante o longo tédio de vigiar um exame:
«A astúcia com que Perseu fez uso do espelho e do seu reflexo para ver a Medusa sem precisar de cruzar o seu com olhar petrificador da Gorgone, é ainda hoje o artifício através do qual olhamos o mundo. A televisão é o espelho de que fazemos uso. Mas esta esperteza encortiçou-nos o coração. Afastados do risco, habituámo-nos a prescindir da reciprocidade e da compaixão com que acolhíamos a dor alheia, e se isso nos permite sobreviver, por outro desmobiliza-nos, anestesia-nos a sensibilidade. Resta saber a que ponto nos aviltou a televisão, pois a cabeça da medusa, mesmo decapitada, transformava em pedra quem os olhava e isto prometia ser pela eternidade. Adivinharam, a cabeça da medusa continua viva no ecrã.
Temos de voltar a abordar de frente o monstruoso para, correndo o risco de nele nos perdermos, recuperarmos a vulnerabilidade que nos impele à coragem de agir face aos problemas, em vez de nos mantermos contristadamente informados sobre eles.»
Chego a casa e a Teresa (Noronha) passa-me esta tradução e pede, mete no blogue. Tinha lido o texto e sentiu-se incapaz de não o traduzir.
Eu, cada vez que torno a Christian Bobin fico abismado. Pela escrita, a um tempo diáfana e elaborada (ainda que não pareça), pelo ritmo das frases que se sucedem redondas como as ondas na praia, pela claridade que não teme as sombras nem nomear o mal; pelo encantatório que imprime a todas as páginas e que o torna para mim (mesmo em prosa) o grande poeta francês do momento.
Aqui fica pois o capítulo de L’Inespérée, traduzido pela urgência da Teresa (- estou lixado, isto vai dar namoro). E como ninguém escreve como ele, calo-me:


O MAL

Ela é suja. Mesmo limpa, está suja. E cobre-se de ouro e de excrementos, de crianças e de panelas. E reina por toda a parte. Ela é como uma rainha gorda e suja que já não tem mais nada para governar, tendo já invadido tudo e a tudo contaminado com a sua sujidade natural. Ninguém lhe resiste. Ela reina em virtude de uma atracção eterna pelo que é baixo, pelo negro dos tempos. Ela está nas prisões como um calmante. Ela está em permanência em certos pavilhões dos hospitais psiquiátricos. É nestes espaços que ela se sente em casa: não se olha para ela, não a escutam, deixam-na em baboseiras no seu canto, colocando à sua frente aqueles que não se sabe muito bem o que fazer com eles. Os dias, quer nos hospitais quer nas prisões, são mais longos que os dias. É necessário que passem. Fazem-na guardar os inválidos mentais, os prisioneiros, os velhos nos asilos. Ela tem infinitamente menos dignidade que estas pessoas, avassaladas pela idade, feridas pela lei ou pela natureza. Ela está-se perfeitamente nas tintas para essa dignidade que lhe falta. Ela contenta-se em fazer o seu trabalho. O seu trabalho é o de sujar a dor que lhe é confiada e aglomerar tudo – a infância e a desgraça, a beleza e o riso, a inteligência e o dinheiro – num único bloco vidrado e viscoso. Chamamos a isto uma janela para o mundo. Mas é mais que uma janela, é o mundo em bloco, o mundo como piolheira desatada, os detritos do mundo entornados a cada segundo na carpete do salão. Claro que podemos escavar. Encontramos por vezes, sobretudo nas primeiras horas da noite, as palavras novas, os rostos frescos. Mas se nas descargas é possível pôr a mão em verdadeiros tesouros, não serve de nada tentar repescar alguma coisa lá dentro, os caixotes do lixo chegam muito rapidamente, os que os manipulam são muito rápidos. Metem pena, estas pessoas. Os jornalistas de televisão fazem pena com a sua falta completa de inteligência e de coração – esta doença dos tempos que eles contraíram, herdada do mundo dos negócios, falem-me de Deus e da vossa mãe, têm um minuto e vinte segundos para responder à minha questão. Um amigo vosso, um filósofo, passa um dia lá dentro, na vitrina engordurada de imagens. Pedem-lhe que venha para falar do amor, e porque têm medo de alguma palavra que possa levar mais tempo, medo que ele chegue a algum lado (porque é necessário a todo o custo que não se passe nada de confuso e de desesperado) – quer dizer menos que nada – por causa deste medo convida-se igualmente vinte pessoas, especialistas disto e daquilo, vinte pessoas o que significa três minutos por pessoa. A vulgaridade, diz-se às crianças que está nas palavras. A verdadeira vulgaridade deste mundo está no tempo, na incapacidade de o despender de doutra forma senão como moedas, depressa, depressa, ir de uma catástrofe aos algarismos da inflacção, depressa depressa passar para as toneladas de prata e da ininteligência profunda da vida, do que é a vida na sua magia sofredora, depressa depressa corramos para a hora seguinte e que sobretudo nada aconteça, nenhuma palavra certa, nenhum espanto puro. E o vosso amigo, após a emissão, inquieta-se um pouco, porquê tanto ódio do pensamento, esta mania de triturar tudo tão fino, e a realizadora dá-lhe esta resposta, magnífica: estou de acordo consigo, mas é melhor que seja eu a estar neste lugar, porque se fosse outro seria bem pior. Esta frase recorda-me os dignatários do Estado Francês durante a segunda guerra mundial e na legitimidade que se atribuía aos virtuosos funcionários do mal: era necessário tomar conta das deportações dos judeus de França, isso permitia-lhes salvar alguns deles. A mesma abjecção, a mesma colaboração com as forças do mundo que arruínam o mundo, a mesma falta absoluta de bom senso: há lugares que é melhor deixar desertos. Há actos que não se podem cometer sem se ser imediatamente desfeito por eles. A televisão, contrariamente ao que ela diz de si mesma, não dá nenhuma notícia ao mundo. A televisão é o mundo que se afunda no mundo, um golfo de choraminguice avinhada, incapaz de dar uma única notícia clara e compreensível. A televisão é o mundo em horário completo, transbordando de sofrimento, impossível de ver nestas condições, impossível de entender. Tu estás ali, no teu sofá ou diante do teu prato, e atiram-te com um cadáver seguido de um golo de um futebolista e abandonam-vos aos três, à nudez da morte, ao rosto do jogador e à tua própria vida, já de si tão obscura, cada um largado no seu cantinho do mundo, separados após terem sido assim tão brutalmente ligados – um morto que nunca acaba de morrer, um jogador que não pára de levantar os braços, e tu que não deixas de procurar o sentido de tudo isso, mas já passou, já estamos noutro assunto, depressão na Bretanha, bom tempo na Córsega. E então’ então o que fazer com a velha golada de imagens, ávida de moedinhas? Nada. Não é preciso fazer nada. Ela ali está e não se mexerá nunca mais. Um mundo sem imagens é a partir de agora impensável. Haverá sempre jovens dinâmicos para as servir, para fazer os negócios sujos no teu lugar, no lugar de todos os outros, em nome de todos os outros. É preciso lograr que o baixo vá até ao fundo, deixar a decomposição orgânica do mundo prosseguir. Está quase a terminar, está quase no fim, não devemos sobretudo reparar no que se tolda – é melhor colocar uma base de tinta nas maçãs do rosto da morta. Deixar proliferar as imagens cegas: qualquer coisa vem à superfície, qualquer coisa vem ao nosso encontro. Existe na dor uma pureza infatigável, a mesma que na alegria, e esta pureza está em marcha por baixo das toneladas de imaginário congeladas. Enquanto esperamos, as imagens verdadeiras, as imagens puras de verdade encontram abrigo na escrita, na compaixão da solidão daquele que as escreve. Velibor Colie, por exemplo. Um escritor jugoslavo, que sem usar imagens belas, diz apenas o que vê, tão simples como isto. Ele relata um acontecimento passado em Modrica, na Bosnia Herzgovina, no dia 17 de Maio de 1992. E na sua forma simples transforma-o em algo que é eterno. Ele vê na singularidade de um lugar e de um acto o que há eterno no mundo desde o início dos tempos, o que te permite ler sem que a coragem desapareça, sem que tu te interrogues a dado momento: para que serve isto, e concede-te o tempo necessário para que a frase acabada de escrever entre no teu espírito, formando um sentido. Lemos: “O cigano Ibro ganhava a sua vida vendendo cartão, papel velho e garrafas vazias. Ele possuía uma carroça desengonçada e várias gerações de habitantes de Modrica ouviam nas primeiras horas do dia o célebre pregão “Transportes de todo o género. Carrega-se mortos e vivos”. Ele vivia numa estranha chaminé, numa rua próxima à Casa de Saúde. Tinha uma mulher surda-muda e um filho de quinze anos, débil mental. No dia 17 de Maio, quando a armada serva entrou definitivamente em Modrica, o cigano Ibro recusou-se a fugir, embora fosse muçulmano. Não tiveram piedade dele. Os soldados servos cortaram-lhe a garganta, assim como à sua mulher e ao seu filho e, como no “tempo dos Turcos”, plantaram as suas cabeças na paliçada da cerca à volta da casa. Segundo o que nos contaram testemunhas, ele tinha, sobre a mesa, no pátio, uma garrafa de raki e café acabado de fazer... Para acolher os militares, no caso de eles virem.” Ao lermos isto podemos ver tudo, ele, a mulher, o filho, a hílare jovialidade dos assassinos, as cabeças espetadas e o café ainda quente. A televisão talvez tivesse mostrado o café, mas insistiria sobretudo nas cabeças, com um prelúdio do género: “hesitamos em mostrar-vos”, e passariam logo adiante porque há mais coisas para mostrar: depressão na Córsega, bom tempo na Bretanha. E tu ficarias ali, sentado na tua casa de jantar, estúpido com as três cabeças em cima da mesa. Ao contrário, na escrita, está tudo – e a pureza trágica do tudo: a hospitalidade concedida aos assassinos. O mal da televisão não está no que a televisão é, está no mundo, e se os confundimos, é porque eles não fazem mais que uma massa perdida, sofredora. O mal do mundo está lá, desde sempre, no recusar da hospitalidade, primeiro fogo sagrado da história humana, antes mesmo do surgimento de Deus. É o mal do mundo e é o de que sofre a louca investida das imagens: não conseguir captar um mínimo da vulnerabilidade da dor, desconhecer as leis elementares da hospitalidade que mandam que se dê de beber a quem vem de longe. Eu distraio, diz a televisão, e há muito que deixou de nos fazer rir. Não se pode fazer cultura para toda a gente, diz a televisão, e não ousamos responder-lhe que não é um problema de cultura mas de inteligência, o que não é seguramente a mesma coisa. A inteligência não tem nada a ver com os diplomas. Ela pode andar conjuntamente com eles mas não é o seu elemento primordial. A inteligência é a força, solitária, de extrair do caos da sua própria vida uma mão cheia de luz suficiente para iluminar um pouco mais longe do que nós próprios – na direcção do outro além, como nós perdido no escuro. Eu transmito o sentimento, diz a televisão, e não temos a coragem de lhe mostrar o abismo que existe, entre o sentimento e a pieguice. Não sou eu, diz a televisão, ao fim e ao cabo é o povo, eu faço o que o povo quer – e não podemos senão calarmo-nos diante do analfabetismo grave da televisão e dos que a fazem. Na palavra do povo correm as mais belas expressões da língua francesa. Ela diz a falta e o entontecimento, a nobreza dos indigentes sob a incúria dos nobres. Fala exactamente o contrário do que diz a televisão. E por ora ficamos por aqui: a dor chega esfomeada nos braços da televisão que a enroupa imediatamente nos seus braços sem previamente a alimentar – escutar ou vê-la. Então ela volta a partir, a dor, e procura um direito de asilo na tinta antes de o encontrar um dia na igreja das imagens – porque tenho a certeza: um dia haverá um homem suficientemente inteligente para saber filmar uma garrafa de raki e um café acabado de fazer, e este homem aceitará tranquilamente perder o seu tempo, dizendo apenas o que tem a dizer e depois calar-se-á, porque por vezes é necessário calar-se para proferir a palavra justa – mostrando, demoradamente, simplesmente mostrar, calmamente, uma garrafa de raki e o café acabado de fazer.     
   

1 comentário:

  1. Obrigado aos três por esse fôlego desenfreado e sensato. E um abraço a vocês dois, cá de Barcelona.

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