domingo, 10 de julho de 2011

OS OSSOS DO OFÍCIO




I                                        (o mistério da mosca)
As moscas, como os ventos, sempre me habitaram.
As moscas de Sartre, as anti-euclidianas de Córtazar,
a Albertina do O’Neill; as moscas etíopes
enroscadas nas faces dos miúdos,
que tomam por aerogares; o temor
nunca confessado de Gregor Samsa
de jovem e sisudo escaravelho dominado 
pelo pesadelo de se julgar uma rutilante mosca verde;
a voluptuosa mosca de Cronenberg;
a volta-ao-mundo-em-oitenta-moscas;
a mosca que é um epígono do anjo
e a irmã: um anjo transistorizado…

A mosca de Victor Hugo.
Que via Victor Hugo na mosca?
Um ponto de mira para o infinito.

O meu primo, em miúdo, tirava-lhes as asas
e enfiava-as nos buracos das tomadas.
Eu era menos cruel e inventei
as moscas-fantasmas, polvilhando-as de farinha.

O que é a paranóia senão uma mosca telescópica
voejando em torno de certas palavras saturadas de açúcar?
Poder-se-á, a propósito das hipérboles da mosca,
falar de uma estética restrita?

Uma vez comprei um casaco de cabedal
numa loja de roupa em segunda mão
e fui perseguido por um zumbido durante cinco horas,
até que descosi parte do forro e vi
que uma mosca se escapulia. Que probabilidades
havia deste fenómeno acontecer?
E porque raio a mim, que fui sempre atraído
pelos mistérios da mosca?

O drama da mosca é ser um estar-aí
sem nunca lhe caber o ensejo de um estar-em-si.
Daí estar tão mal equipada: o seu horizonte
visual não ultrapassa o meio metro
e a sua percepção visual não tem a acuidade
necessária para topar a teia de aranha,
literalmente invisível para o desprevenido díptero.
Talvez seja este pormenor que liga a nossa condição
à da mosca: ela não vê a teia como nós
não captamos a urdidura viscosa com que o futuro
nos atrai e lixa com a sua lixa para ferro.

A mosca é um hiato na eternidade
ou o excremento do vento? 
Pressinto que a mosca é uma luva
que nunca encontrou dedos.
Toma e assina, por baixo.


ii
O Tejo já foi mais poderoso que os fulminantes
da minha infância. Quando os cacilheiros baliam
no nevoeiro como cordeiros amedrontados
e as vagas recortavam o dorso de um animal adormecido. 
Não havia radar e as histórias de naufrágios secavam os olhos.
Era muito raro, à travessia, despregar o silêncio dos cascos de espuma.
A lembrança do terramoto de 1755 e da fúria
que o rio semeara até ao Rossio acentuou o meu respeito
pelo estuário e firmou uma certeza: o Tejo
tinha seiscentos metros de profundidade.
Os anos aquietaram as águas e o Mar da Palha
marinou de cordato, virou maricon.
Mas nada me preparou para a chapada que levei em 95
quando me mostraram uma carta topográfica
onde se desenhava um charco que na sua máxima
profundidade atingia os 40 metros.
Valery, mais avisado, diria que a profundidade
está na pele, mas o drama é que ninguém escapa
de recolher os cacos das suas decepções.
Os safios passaram a ser espécimes de aquário –
os ferrys cresceram em segurança e infalibilidade.
As nuvens sobre o rio emurcheceram em telões.
E pelo meio houve um sacana que me abordou
com escárnio: mas tu, quando chegas de avião,
não vês os galeões no fundo?
Em miúdo, contava-se, um rapaz perdeu
a mão num rebentamento de fulminantes
– parece-me mais bravo que a fatalidade
de morrer atolado numa banheira.   


iii 
O meu avô paterno coxeava. Em casa usava-se
a expressão bicos-de-papagaio com mais assiduidade
que amor, levas um tabefe ou atenção miúdo. Recordo-me
do meu avô entornar três ou quatro favais
de seguida e alegrete provocar uma das suas irmãs
de culto com a hipótese de Deus sofrer de espandilose.
O meu pai também foi mordido por um joelho,
o direito, até aos 35 anos. Inchava-lhe o joelho,
deixando-o a coser em dores toda a noite.
Um dia alguém lhe falou nas propriedades
da argila e, de facto, com pachos diários de barro,
a enfermidade secou. Não liguei mais aos ossos
até que a discutir ópera, afincadamente,
com um amigo, este, num arrebatamento wagneriano,
me deu um leve empurrão e me vi em trajectória
de voo, aterrando de ombro contra o lancil
de uma caldeira. Estilhacei a cabeça do úmero,
que ficou com o pasmado desenho da foz do Nilo.
E então compreendi finalmente que Bernard Noel,
num poema, aluda a uma “tente d’os” (tenda de ossos),
porque abaixo do tecto do céu, abaixo do tecto
de ossos – somos espuma e estamos tenazmente sós. 


iv
Enlouqueceriam os objectos, se fossem tocados
como os sentimos? O primeiro objecto que recordo
é um avião de lata, embrulhado em celofane e abandono.
Porquê em celofane? E de que matéria é o abandono?
Mistério duma plasticidade tão inesgotável
que só tem par na sobriedade angélica.

O primeiro vínculo: um avião de lata.
O que talvez tenha origem na minha denegação
radical: jura a minha mãe que eu teria rejeitado a mama.
Hipótese difícil de validar, pois que irreparável decepção
leva um nascituro a aderir à fotossíntese?
Mas, ela jura! Eu, até onde a reminiscência labora,
só confirmo que um toque de lata se apega ao jeito da mão.
O meu primeiro toque.

E teria nascido com a minha irmã, aos três anos,
a irrefutável sensação de abandono?
Sobrava um intruso em casa, uma criatura alada,
reclamada de mão em mão, armada de fralda,
pulmões, vagidos de aço, e com regurgitos no lugar dos élitros.
Levei dias a lançar o avião de lata sobre o berço,
num arremedo de bombardeio.

E não é que falhei, na mira e na aviação?


v
A minha timidez escorre em chuvas ácidas,
com efeitos retroactivos. É uma bagagem
que não se despovoa, nem muda de cabide
com a idade. Ao fim de décadas de prática
é difícil a um tímido destrinçar o que separa
a timidez dum travestimento da cobardia
– mas que se torna um campo
de restrições, é indubitável.
Hoje li a seguinte manchete num matutino:
“Nos EUA, ataque cardíaco prolonga a vida
dum condenado à morte” e apercebi-me
que estava diante da tipologia do paradoxo
que um tímido encarna – a vida embarga-o
tanto que muitas vezes se apanha a desejar
a desculpabilização dum enfarte.
Um tímido tem sempre a resposta na ponta
da língua: o seu drama é viver aquém
da personagem, desinvestir antes de tempo.
É um céptico, apesar de si.
A timidez arrastou-me toda a vida
por desventuras tremendas. A história
do meu primeiro beijo é o espectáculo
de uma crisálída a devorar a sua borboleta.
Lábia não me faltava mas quando chegava a hora
da prova... falava da morte. Carregava fundo
num contorcionismo existencial que, coitadas,
no esplendor avícola dos treze, catorze anos,
as retorcia em náuseas. Rapidamente
me regurgitavam e eu - no fundo aliviado,
visto intuir que a espera para a levitação
de um beijo admite uma tolerância mínima –
acusava-as de frivolidade.
A minha dúvida era técnica – sobre
o exacto manejo da língua, que áreas da boca
ocupar, se o objectivo era escrever em morse,
com a língua, no palato dela «amo-te»,
ou se despontariam cãibras na língua,
em pleno acto... Um mundo de dúvidas
que, diziam-nos, não se confessa
a nenhum adversário. E para isso
havia o cinema. Todos os domingos palmilhavava
7 km até ao Porto Brandão para beneficiar
da vista grossa do porteiro dum cine-esplanada
onde os minorcas podiam entrar nos filmes para 18:
era o meu hangar de beijos.
Os tímidos são hoje no mundo
os que acreditam e esperam por um milagre,
o milagre da incontinência.  




vi

Nascemos sob a laje de uma atmosfera.

De ano para ano outras se equilibram

no estirado músculo cardíaco,

às vezes sem barra, pelo puro arrojo da fé.

Quando ninguém aplaude, as atmosferas
encarquilham, recolhem ao cofre
dos nomes convertendo-se em miasma.
Se no último instante uma palavra
acudisse ao trespasse compreenderíamos
que morremos como ostras ou como
aquela luva que nunca encontrou mosca.


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