quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O SUJEITO É O HOMEM QUE INVERTE O BOATO EM CARNE

matta, o nascimento do homem

Textos achados em cadernos e que não terão outro chão alem da tábua de salvação do Raposas:

CANTATA SOMBRIA
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A figura que faz o António nesta foto
de 16 de Janeiro, nascido a chupar um talo
de azeda, reminiscência expedida
pela mãe à terceira contracção.
É nítido o seu desapontamento de pássaro,
à ordem de não nomear os sentidos,
nesta outra fotografia onde os dedos se ema-
ranham, íntimos, no decote da vizinha,
por sinal uma viúva cabo-verdiana
que como Josephine Baker todos os dias
esfregava um limão na pele na promessa de a aclarar.
Tinha cinco anos, era Carnaval e o riso
propagou-se à medida do apetite da fera.
Aqui (reparem na pelintrice) está próximo
da altiva surdez que faz dos primeiros anos
de poeta um caso bicudo de desfaçatez.
Ora a figurinha, inteiriçada no seu fato
de casamento, afluente de que fugiu
antes da degola (sacrifício imaginado, só
para heroificar a estulta arte de saltar fora).
O desfoque desta foto corresponde aos anos
de narça e reptação: palavra, como a boémia,
que tira mais do que promete. Nesta,
prepara aulas, ou anota o que roubou
de um teste: «o sujeito é o homem
que inverte o boato em carne».
Ei-lo aos cinquenta, de novo
irascível, retraído peixe balão.


A PALAVRA QUE CURA

Lia: “foi o poder de curar com palavras reconhecido oficialmente por um alvará de João IV de 13 de Outubro de 1654, o qual concede ao soldado António Rodrigues (ah, vertiginosos os Antónios!) 40 mil reis por ano, pelas curas que tem feito com palavras, e para assistir ao exército, a fim ‘de se poderem valer dele.”, quando cantou o galo, gola da madrugada, e a sombra, finalmente, o atravessou a vau.
Desabafou, sonolento, ‘que tristeza as palavras afluírem hoje ao poema carregadas de impermeáveis, guarda-chuvas e sprays anti-alérgicos, e até nos cotovelos, apresentarem, os tinteiros da nação, airbag!’, e depois adormeceu como uma múmia anã no verso das pálpebras!


O EXACTO VALOR DAS COISAS

E quanto vale o cérebro do arganaz em lúcia-limas? E o sémen do cachalote? Que valemos nós antes de, esparsos, decairmos, inquire Holub, o imunologista de maior fama entre os poetas.
Quanto custa a língua sob a cama do morto? Que vale o impalpável país onde, à falta de crianças, se amontoam os espaços de penumbra? Que câmbio para a poesia, o céu submerso em vimes, o tempo que adoça às cegas?
Não escrever nenhuma palavra de desânimo, tomada de caruncho. Ou, de fazê-lo, cinco anos de cadeia.


AUTO-RETRATO NO CHAPA PARA O XAI-XAI

Que homem tão original, pensava a menina que me enchia de macacos o cabelo, mucos tenros tirados expressamente das narinas que a obstipavam (palavra tão bonita!).
A mãe não via, a mãe era um caso de cegueira e paciência, o contrário da petiz que, para regozijo dos poetas, compensava em mucos tenros a friagem do mundo.
Ai o cobrador!, corou a ceguinha que tinha muito cotão ao fundo da carteira e aventais de seda na lembrança de ter sido empregada da Régula do Xai-Xai.
A menina, ao colo, não desarmava, e o muquinho tenro floria um desfiladeiro sem passarinhos.


O PETISCO PITAGÓRICO

Adoro o número quatro. Para mim, são águas sagradas.
Casei no dia quatro (floresceram antes de tempo as giestas e confundi as chaves).
E apesar de ter corrido mal (ainda corre) não me apanharão fora de casa antes
de ébria (direito às tramas, ao circo perverso) fazer o quatro sobre o corpo mole,
urinado e desfalcado do consorte. Quatro são as cordas da Harpa
e do Bandolim, nomes que dei aos nossos filhos, para desgosto dele
que os deplora e preferia desenvaidecidos  Ivos, Pedros, Artures
- sem perceber que indescartável só o Merlim.
E que é o amor senão quatro nádegas encantadas em torno de caduceu,
quatro cobras entrançando línguas numa rosca salteada?
Não obstante, com contrição e êxtase, recordo
o orgasmo em que vi distinto o carácter do cinco.


VARIAÇÃO DE UM MOTIVO DE CORTAZAR

No centro da hóstia, uma pestana. Como isso afecta o sacerdote! Nunca entendi porquê. Quem ainda consegue mungir a flecha de ontem? Nem lhe atinjo a dúvida, se a pestana é da Virgem!
Ou então, na verdade aturdem-no os meus peitos, abundantes, fulmíneos - o que eles cresceram de um ano para outro! – e fixa, arredonda o olhar num limiar de neve. E pretexta a pestana enxertada na hóstia.
Nem dei conta, nem Cristo, que se alça atrás do sacerdote, revirou os olhos.
A súcia tem sustida a respiração na vacilação do padre e, palpitando-me no decote um vocábulo eriçado, sinto-me pela primeira vez nua como se vez d’hóstia ou ultraje fosse Bocage.


CABEÇA PARA A DIALÉCTICA

Ai, o que ele gostava de perdiz! Isso a cigana não lhe leu na mão,
nem como à noite se enroscava nas sombras e roubava gasolina aos vizinhos
com um chupão na mangueira. A presumida sorte e o seu descaso
detectou ela, e o irreflectido que é no amor, tão leitoso cesto de figos
que me desposou sem averiguar que não possuo umbigo e de natural
debico junto às gralhas as bagas dissonantes, ossos de borboleta.
’A Filosofia ela própria!’, assim me apresentava o néscio a amigos
e professores, isto antes de lhe ter implantado duas penas no crânio
e de o ter posto a cacarejar Platão na cancela da casa.
Pegar a perdiz pelos cornos perdeu o valor de metáfora.


MÉTODO DE CALIGRAFIA PARA A MÃO ESQUERDA

Não a poupes, gasta o mais possível
a tua morte. Sê um perdulário, se a idade
for um fogo que não pudeste extinguir
não te demova a dor. Palpa-a,
deixa que radie, e que esbraseie
como tudo o que envolve a pedra: o ar,
o pavio da pele, o sangue cujo frémito
arboresce a noite; deixa que no interior
da íris, se isole e canse, a recuperar
a simpatia que já foi sua, o apego
de uma cunha à mesa da noite.
Mantê-la debruçada no parapeito
da preguiça é o teu ofício, e nunca
te arrepiem as unhas roídas de sono.

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