sábado, 8 de outubro de 2011

NAPOLEÃO, O NOBEL E O QUEIJO DE SEIA



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É Julien Gracq quem conta num livro de entrevistas que sempre achei maçador e que hoje me pus a devorar com um interesse crescente, o que só demonstra que as obras têm um tempo de decantação em nós e nunca nos devemos precipitar a julgá-las, mas dizia eu que ele, falando do teatro e do modo como ocupava a cena social nos séculos XVIII e XIX, conta que Stendhal ia ao teatro todas as noites e que Napoleão também, ainda que este último nunca visse mais que um só acto.
Espantoso este pormenor: é mesmo de um estratega viciado no seu talento, nem as peças de teatro via até ao fim para poder adivinhar o seu desenvolvimento, peripécias e o destino das personagens. Um pormenor que faz a grandeza do homem ou a sua tremenda imaginação.
Da imaginação também abusava um tal Jean-Baptiste Pérès que em 1842 conseguiu demonstrar num livro que Napoleão Bonaparte não havia existido, e que era uma alucinação colectiva para esconder a influência de Apolo nas dinâmicas sociais.
Por muito delirante e iconoclasta que a hipótese fosse, o que é facto é que o livro o demonstra, apoiado em muita informação e num indesmentível arcaboiço lógico. O único problema que a volúpia de tal exercício tinha contra as suas evidências era a iniludível teimosia de Napoleão em ter sido. 
Era Jean-Baptiste um génio à altura do imperador? Era, sem dúvida, um negacionista de génio, e ainda bem que Napoleão não teve de enfrentá-lo no terreno, pois bastaria ao erudito um apagador, um giz e uma ardósia para reduzir a pó qualquer veleidade do estratega.

2
Pergunta o Henrique Fialho se alguma vez a algum génio da poesia foi dado um prémio, Nobel ou outro – e refere-se a um «génio», e não a um poeta bastamente razoável, ou a um “muito bom” - a um «génio sem espinhas», como diria o outro. É uma provocação saudável, que não deve ser escamoteada.
Se tomarmos um génio na acepção romântica de uma espécie de centauro com uma percepção poética em delta e passos verticais na direcção da grande área do “sublime”, poucos de facto estarão à altura o desafio. Vejamos três exemplos: Pessoa e Michaux, ou Pound. Não lhes emprestaram a bola de ouro. E todos eles foram avessos às agremiações literárias que tornam a coisa possível.
Eis agora dois poetas que tiveram o Nobel e que aprecio com intermitências: Neruda e Saint-John Perse. Apesar das minhas reservas, ambos têm uma obra, um volume, uma densidade inegáveis. Preferia que, no caso do Chile, o Nobel tivesse recaído sobre o Nicanor Parra, da geração a seguir ao Neruda, mas suspeito que eles na Suécia imaginavam que isso seria incendiar o campo de jogo. E, para além da sua qualidade, houve com certeza algo de político na escolha de Neruda contra Lezama Lima ou Borges - mais determinantes.
Mas não dramatizemos. Para o meu gosto, a poesia não tem estado mal servida nos últimos Prémios Nobel que lhe têm saído. Se a um Seamus Heaney eu preferia um Ted Hughes, para mim mais próximo do «meu tipo» de génio, a poesia do primeiro é uma obra com um nível muito alto na tradição que representa. E não tenho dúvidas, para o meu gosto, tanto Milozs, como Paz (que vejo como um todo e não unicamente como fazedor de versos), Brodsky ou Derek Walcott, cada um no seu género, são poetas que roçam o “génio”, no sentido em que todos atingiram picos altíssimos no sistema das suas cordilheiras.
O Derek, por exemplo, que nem teve direito a tradução para Portugal, suponho que por ser negro, é um poeta extraordinário, capaz de ímpeto, improviso e arquitectura, isto é, capaz de embarcar no mais puro beat jazzístico como na cadência clássica. Ainda por cima também é um dramaturgo de monta.
Também não creio que Montale desmerecesse o prémio. Nem talvez Seferis – apesar de julgar que o génio da poesia grega do século XX seja Ritsos. Mas este era comunista, e isso jogou contra ele, ao contrário do que aconteceu com Neruda.
Há por outro lado uma lista de poetas que me são muito caros – Alain Jouffroy, Hugo Claus (este bateu as botas este ano), Leopoldo Maria Panero, Carlos Edmundo de Ory, Homero Aridjis, Andrea Zanzotto, Ferreira Gullar, ou Mark Strand – situando-se cada um, para mim, num plinto muito alto, mas não creio que efectivamente a nenhum deles caiba o vestidinho decotado da Glória do Nobel, uma moça como se sabe com predicados, porque sempre correram foram das pistas. E alguns incendiariam o relvado.
Contudo, não creio que a rapariga – a do decote – mereça ser desdenhada, a avaliar pela qualidade dos oficiais dos correios que a têm levado ao cineminha -, na minha opinião vale bem dividirmos  um queijinho de Seia. E ao Bob Dylan palpita-me que ela preferiria o Leonard Cohen, talvez um belíssimo poeta (e sempre é canadiano – os meus amigos repararam que 90 % dos candidatos eram dos States?). 
Eu acho que a provocação do Henrique Fialho deve ser lida num sentido justo: aquilo que acontece na Física, ou na Matemática, não é o acontece na Literatura. Aí premeiam-se investigadores de ponta, gente que experimenta e arrisca “cegamente”, como é próprio da ciência. Na poesia, na maior parte das vezes, escolhem-se as vozes que oferecem segurança, gente muito boa mas que conduz com airbag e que as academias têm seguido, bem ou mal.
Talvez a provocação do Henrique Fialho denote ainda uma concepção um pouco romântica e heróica da literatura… mas deixemo-nos de pruridos, e aqui dou-lhe a mão à palmatória, a gente lê a última entrevista que o Roberto Bolano (também poeta, embora ninguém fale disso) deu à Playboy mexicana, a semanas de bater as botas, e interroga-se, e por que não? Brota ali uma energia (cf. em baixo), uma lucidez, uma inteligência, humor e imaginação, uma fúria de viver que, assim, em confluência, indesmentivelmente se encontra em raros. E quem pode, pode - o resto é conversa.

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