domingo, 30 de outubro de 2011

A VISITA





Este país é tão pobre de espírito que nem aceita duas ideias diferentes sobre a mesma personagem, proferiu um dia Camilo José Cela sobre a Espanha. O que é certo é este conto de José Angel Valente espantará muito quem sobre ele tenha uma ideia-feita. Pertence ao livro El Fin de la Edade de Plata, seguido de Nueve Enunciaciones. Livro de poemas em prosa e pequenos contos. A tradução é minha.  

Havia duas moscas. Havia duas moscas persistentes. Havia duas moscas persistentes copulando na calva do chofer. Era uma obscenidade inenarrável. Obscenidade, pensaste. Provocação, disse sem vacilar o teu amigo. O chofer, impreterível ao volante. O suor parecia nascer-lhe dos miolos, como se dentro tivesse moscas copulando que ressumassem sebo e satisfação. Assim nasceu Atenas, comentaste.
- Você perdoe-me – cochichou o meu amigo, arqueando o indicador contra o polegar para lhe dar impulso. Catapultado, o dedo acertou em cheio na calva branca e os insectos estatelaram-se no vidro dianteiro do carro. Sobressaltou-se o chofer e esteve a um fio de estampar-nos no castelo português que agora contornávamos. O careca desatou aos impropérios, onde comparecia alguma das três sagradas figuras e o governador militar da praça (praça forte, castelo português e regime alternado de poente e levante).
- Você desculpe.
Mas o dito vociferava ao volante, muito direito. E, no fim de contas, sempre ventilaria a alma se nos espetássemos contra a muralha ilustre, com o calor que fazia no táxi alugado para cinco.
- Melhor não discutir – disse o meu amigo, porque apesar de tudo, o calvo era a chave do assunto e havia que liquidar com ele as prestações ou o a pronto pagamento, o que segundo o meu amigo era o mesmo, pois só o calvo conhecia o lugar e a coisa não era para ser desfeita, à última hora. A mim parecia-me que o calvo tinha razão, mas assenti com os outros três, porque o meu amigo dirigia as operações desde o começo. Ele tinha feito o acordo com o careca e, dada a situação, o melhor era calarmo-nos.
O táxi já enfiava gaguejante num declive, do outro lado do castelo, por onde a cidade se faz mais alta e o mar ressalta em fundo e se entra em tortuosas ruelas de casas muito, muito encardidas. Estava tudo previsto para entre as três e as seis, na quinta, que era quando nos recebiam as senhoras. A coisa era excepcional e nem todo o recém-chegado tinha acesso a ela. Mas o meu amigo era um especialista em negócios matreiros e havia ajustado tudo com tantas contra-senhas e nomes falsos e com tal afã que seria inútil resistir à sua autoridade indiscutível.
O calvo parou e, enquanto descíamos do táxi, disse que esperaria três ruas abaixo por ali estar mais folgado e poder beber algo, e além disso ali mesmo não podia ficar a servir de isco para os zunzuns e a denúncia, se tudo se podia organizar sem necessidade de um escândalo.
Bebemos, não sem certo nervosismo, e ao entrarmos na casa, silente na penumbra, era tão vivo o contraste com a crua luz do exterior que mal víamos um palmo. Assim nos encontrámos, de supetão, na sala, que tinha as cadeiras encostadas à parede e uma mesita baixa no centro com copos de limonada muito pálida, onde se via o açúcar por mexer no fundo. Nas cadeiras estavam as senhoras que reservavam em cada semana três horas, às quintas, àquele pequeno comércio, trabalho extraordinário, atreito a gorjeta. Eram quase todas de sólida aparência e de tetas roliças, mães decentíssimas, às quais o parco soldo de sub-oficiais e a escassez daqueles anos obrigava à sesta com jovens liberais, que o careca e a proprietária da casa, viúva de maestro, organizavam.
Os vultos memoráveis e os rostos começavam a perfilar-se melhor na pupila, habituada já à penumbra. As senhoras abanicavam-se com manifesta dignidade. O trato foi, de entrada, rigoroso e solene.
A viúva fez uma hábil distribuição dos casais, compensadas com tercetos dado o caso, indicação de quarto e preços, reduções possíveis contra a garantia de repetir as quintas, e outras normas de contabilidade e higiene. A limonada produzia, parecia-me, um vago mal-estar e um enervante marulhar nas tripas. O calor que sufocava a olhos vistos, evoluía, na insólita ocasião, em arrepios.
Preliminares não havia, ou eram escassos. Quando a senhora se sentou na borda da cama, eu comentei algo a propósito da colcha de flores. A senhora encolheu os ombros e retorquiu com uma olhadela maliciosa, como se lhe tivesse assomado uma segurança natural e já pudesse chegar-se a mim, mais dona de si mesma, com um sorriso entre o descarado, o materno e o patriótico. Maldisse a limonada e, sem poder prevê-lo, fui tomado por uma tontura. Depois, enquanto esperava pelos outros no táxi, três ruas abaixo, exânime e estendido no banco de trás, senti que o calvo me olhava intrigado ou numa expressão de zomba, mas não imisericordioso, pensei então.
  

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