quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

CARTA A UM JOVEM CRIADOR 9

gravura do poeta Jorge de Lima

Tanto no texto que escrevi para a apresentação de Respiro, como no breve apontamento que li na apresentação de Conversas Com a Sombra, de Tânia Tomé, falo da solidão e da sua necessidade para a criação.
Bom, é difícil ser mais óbvio.
Suponhamos que nos encontramos às apalpadelas num quarto às escuras e que para nos orientarmos precisamos de encontrar uma estria. É mais fácil concentrarmo-nos nessa busca sozinhos do que no interior de uma algazarra que, pelo enxamear de opiniões, nos fissura.
Não há nada de “heróico” na minha concepção de solidão, de egolatria em carne viva. Aliás, que egolatria se apresenta sem máscara? 
Mas que tipo de solidão reivindico?
Mantenho que a gente mais inteligente é a que chega realmente a interessar-se pelos outros e pela singularidade ela-mesmo. Prado Coelho, Daney, Deleuze, Blanchot, eram esse tipo de gente generosa e inteligente que pensava com os outros, alargando por empatia o âmbito.
O que me parece é que o poeta ou o artista precisam de criar um espaço de isolamento, uma espécie de caixa negra onde cultivar o como se. Não me refiro a qualquer torre de marfim, mas ao espaço transicional de que falava D.W. Winnicott: um laboratório privado, no essencial vazio, onde cada um inventa uma distância a si e ao mundo através do playing. Este, mais que o jogo, é um espaço intermédio que, potenciado pelo devaneio, lhe permite engrenar mundos virtuais e gerir a sua autonomia nisso.
Pense-se no empty space de Peter Brook, que não é um pleno disfarçado. É antes preciso escavar mais no vazio para se encontrar algo. As crianças criam-no por instinto, ao fim de estarem uma semana sem televisão. Até aí sofrem como minhocas assombradas pelo fantasma do anzol porque o seu vazio está preenchido por uma polpa espectral. Depois desatam uma autonomia que lhes vai cimentando um imaginário.
Há um momento apropriado e uma incidência correcta para sermos um poro em relação ao exterior. Antes é perigoso, depois projectamos demais.
Daí que não sejam anódinos os efeitos dos primeiros contactos após a socialização do que escrevemos. Pela atracção dos afectos que todos os efeitos geram, nesse circuito, podemos deslocar-nos inteiramente para fora e ficarmos reféns dos actos relacionais.
Um extremo dessa dependência encontramo-lo nesta formulação de Bourriaud: «…não é obra em si mesma que importa mas antes o olhar do espectador sobre ela», fórmula que não passa de uma falácia que borbulha momentaneamente (com os seus 15 segundos de fama) na espuma da era do mercado, pois o que move o criador não se reduz à esfera da reciprocidade.
Winnicott fazia uma distinção essencial entre game e playing. O game é o jogo que obedece a regras precisas, e no playing as regras descobrem-se e inventam-se à medida do desenrolar do jogo.  Nesta brecha, onde as regras se criam autonomamente à medida do jogo, a solidão é uma reserva indelegável, o nosso banco de coral.
Mas é preciso amar a solidão, que seja intrínseca e interior ao feixe de vozes que nos é anterior, é preciso desejá-la; de contrário, o primeiro contacto fere a membrana que nos separa e singulariza.
Quando dois bancos de corais coincidem no espaço dá-se uma afinidade electiva; pelo contrário, se um agregado coincide numa plataforma de interesses comuns sucede-se a promiscuidade das opiniões. São coisas opostas e a segunda arrasta consigo a perda da solidão: a derrapagem para o game.
Pai, quando eras pequenino conseguias fazer a aranha à frente… – pergunta-me a minha filha Luna, obrigando-me a largar a teia.
Eis-me numa solidão habitada, mas isto é reflexão para outro dia.

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