sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

FECHADO PARA BALANÇO: NATAL DE 2011


Está decidido, vou fechar para balanço. Não que vá abandonar o blogue, mas vou deixar de postar nele poemas meus. Há tantas coisas maravilhosas para falar, revelar, traduzir, que é absolutamente escusado acrescentar mais uma sílaba à tagarelice do mundo.
E, periodicamente, para nos renovarmos, temos de retomar a distância, o silêncio, reabrir as margens à ferida. Foi um ano de festa, de espontaneidade, de surf, mas desconfio da facilidade. Há uma lenda – é absoluta lenda – de que o Miró quando já dominava o desenho começou a desenhar com a mão esquerda para voltar às dificuldades, ao embaraço, à refrega e ao tinir dos metais no combate. Contudo, é uma boa lenda, que nos deve incitar a disciplina. Eu vou recomeçar com a esquerda, visando zonas sem domínio.
Dizia o Larkin que o poeta não mata dragões. É verdade, mas não acreditar que se podem criar os dragões é uma vil suficiência de pornógrafo. Um poeta não é um notário, senão para quê empobrecer por tão pouco? Creio mais no que avisava o Char: pobre do poema que não ensina nada que o poeta não saiba de antemão. Por isso me cansa ler tantos milhões de poemas tão confiantes em si mesmos, tão bons como desnecessários. Temos de ser mais exigentes. Claro que cada um só fala por si, mas a mim não me chega o que me é dado, e preciso de voltar à caça brava por uns meses.
É preciso admirar, aguentar o silêncio, ter medo, meter o arado no profuso chão humilde.
Aqui vos deixo o último, escrito esta noite, depois de ontem ter ido buscar aos Correios alguns exemplares de Respiro, curto ensaio meu que o Diogo Vaz Pinto editou. Daí que lhe vá dedicado, como ao Nicodemos Sena, o meu editor no Brasil.
Entretanto, o Manuel Augusto Araújo, no seu blogue, Praça do Bocage, http://pracadobocage.wordpress.com/2011/12/23/sem-titulo/, fez um excelente comentário à resenha que saiu no Brasil sobre o meu livro A Maldição de Ondina, na Folha de S. Paulo, onde se considera o meu livro “imperdível” e lhe ‘e atribuída a classificação de “óptimo”. Muito lhe agradeço. E melhor Natal não podia ter.
Boas festas para os meus amigos e inimigos.




FECHADO PARA BALANÇO: NATAL DE 2011
                                          
                                                        para o Diogo Vaz Pinto e o Nicodemos Sena

Intratável, o tempo arqueia o arco e visa
o silêncio escorchado que me espera.
Na aflição de um peixe, dou comigo sentado
na pedra de um cais  (- imagino,
lá dentro as filhas rondam as prendas
na árvore, com a incontida, iridescente, alegria
que unicamente se encontra na profundidade
oceânica, só eu me divido
como as células nas veias de Deus).

Calo-me, sou o homem a quem diante
do mar convulsiona a orla
das suas pequenas e grandes dívidas.
Respiro, neste débito, como o pequeno livro
que ontem me chegou e encontrou um tapete
de azedas sobre uma língua morta.
Como agradecer à vida, aos amigos, ao barulho
dos seus passos, aos seus primeiros
estratos de silêncio? Eu, tão imperfeito,
um bogartiano bêbado sem pátria,
e tantas vezes confundido
com as personagens que me povoam
a boca de vinho de palma?

Havia tanta coisa a dizer sobre o erre
de sopro, por exemplo, o tutano
de chumbo no voo dos flamingos.
De antemão, inúmeras coisas a rogar
ao informulado: que repare como as portas,
precisamente as portas, adernam
como os navios, e que o que escorre no mel
é a reversibilidade de pensar-se abelha.
Mínimas, irisadas singularidades
que enchem de favos plenos o vazio.

Ha dois dias que não despego deste verso
de Branca Varela: golpeamos
com o osso de uma flor na treva.
Intuo nele que o grão da terra
é o graal, como a pelagem nas pedras,
e que aflui a cicatriz do herpes
do consentimento do amor.

É Natal, e é-me mais fácil conversar
com a eternidade do que com amigos e filhas.
Talvez porque a eternidade de mim já não
espera nada. Mas pressinto neste lapso -
gaguez em gótico - o que separa a infame
impostura de quem sabe da profunda
humanidade de quem nasce
para o inacostumado. Não sou cristão,
permeia-me porém a sensibilidade
das árvores a quem apenas o vento restitui
a lembrança de uma culminação em delta, verde.
E só no exterior dos meus limites me identifico,
como as pedras esculpidas nas igrejas.

Sempre que o amor me quiser,
rezava uma canção da minha adolescência
e agora, maduro como o fruto que sente
o pecíolo a prazo (- que verso vulgar),
iluminado pelas evidências de que no final
as orelhas não são borboletas
e de que a guerra é infinita
dilacera-me o itinerário para me salvar
da ventriloquia. Ainda que não haja
outro caminho: para passar além
da morte preciso é estar grato
aos que nos chamam do país dos mortos.  

1 comentário:

  1. Maravilhoso (último) poema. Li-o com a tristeza de quem adquiriu o hábito de vir "roubar" fragmentos de beleza. Uma beleza pouco comum e que, talvez por isso, me fazia uma leitora atenta. Vou vir sempre, de qualquer modo. Lê-lo é um privilégio. E eu, hoje, sinto-me especialmente privilegida. Partilhei, no FB, o post do Manuel Augusto Araújo sobre a edição do seu livro no Brasil e, um amigo comum, que teve a sorte de receber o seu livro por e-mail, leu a minha partilha e como conhece a minha admiração pelo que escreve, resolveu enviar-me um mail com o livro. É, assim, que já estou a ler, encantada, "A Maldição de Ondina". Bem hajam os amigos. Um bom Natal. Aliete

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