segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

TRÊS LIVROS RECEBIDOS DE LISBOA

matta

Recebi de Lisboa, expedidos por mão gentil, alguns livros da Averno. Quem diremos nós que viva?, de Vítor Nogueira, Oráculos de Cabeceira, de Rui Pires Cabral, e Thaumatrope, de Alexandre Sarrazola. Como não sei ler sem uma caneta na mão, aqui deixo os primeiros contágios, nascidos das páginas brancas de cada um dos livros.


QUEM DIREMOS NÓS QUE VIVA?

Necessário se torna lembrar que debaixo de água
o tempo atraca com sérios danos para o seu casco.
Que milhares de pêndulos ficaram carecas de saber
que, submerso, não obstante as falinhas mansas,
o orgulhoso tiquetaque vale menos
que um zumbido no coração das medusas.

Oito pandas gigantes, acabadinhos de chegar
da China à Old Albion, foram recebidos com gaitas
de foles, vê-se no Euronews. Mais próximo,
um fiat desabrido passou o amarelo, galgou
os raides e precipitou-se num enlameado
Trancão, continua o sismógrafo.

Nada das expectativas e colapsos
anunciados supera hoje, em sugestão,
o verso onde imaginei milhões de relógios
a resvalarem dos seus pulsos para o fundo
dos oceanos, enquanto os ponteiros d’olhos
arregalados  se especializavam em pinturas
rupestres. Com que rouca voz, assentaram
tais cebolas no fundo, pestanejando
como sonhos temerosos de despertarem
miradouros vazados de futuro?

Há anos que luto para escrever o capítulo
sobre o corsário Bocage, o avô gaulês      
de Manuel Maria Barbosa, que veio a Lisboa
vender três caixas de relógios saqueadas
a um bergantim holandês, mas agora adivinhei
que o seu navio afundou no Mar da Palha
levando consigo a carga; decidindo-se
então o ex-compatriota de Zinedine  
Zidane, extenuado com o tempo
que perdera, a ficar em Lisboa.

Intuo agora como começar a narrativa,
os inúmeros relógios a despertarem no estômago
de safios, lampreias e robalos, daqueles de quatro
quilos que o meu pescava no Bico da Areia.
Fica o deserto mais repleto quando naufraga
um ponteiro ou pelo contrário vicejam
jardins entre os minutos e as horas,
é a minha única dúvida quanto ao estado
de alma daqueles mecanismos
incapazes de fingir que são eles mesmos.




THAUMATROPE

Arminda é o nome da escultórica macua
que, mastigando a chuimingue, aplica o abre-
-núncio às beers na tasca do beco fronteiro
ao Mercado Central, em Maputo.
Seria esta função menor, não fora dar-se
como bisneta bastarda de Gago Coutinho e de
se ouvir um hélice  ao fundo de tudo o que diz.

Neste momento, a sonsa Arminda abeira-se
da mesa do patrão, debicando no amendoim
que colhe da palma da mão, e responde, dolente
e descarada, quando este põe em dúvida
uma conta que ela pôs na caixa,:
esse white aí, viu tudo!”, passando-me
para o regaço cinco kg de papaia roubada.

Afasta-se a Arminda, perene e pernilonga,
sobre duas agulhas de amoníaco e alfazema.
Estás-me a dever uma, garota, assobio,
ciente de que a dívida será paga sem burburinho,
de que a vida – um prurido no ponto mais
sensível de certas espeluncas - é menos justa
mas mais ambivalente que a literatura.




ORÁCULOS DE CABECEIRA

O arrabalde tem isto: é um verão
que não acaba.
Dão nisto os centros:
carentes de resina, do cheiro a mar,
surdos ao ópus n.3 para vento e jacarandá,
ao relapso movimento da alegria,
contraem úlceras
que desditosamente se disfarçam em paus de incenso,
em certos livros tardios e vinhos mais caros
e lacónicos. O vento
é todos os ventos, escrevia Hugo,
mentindo a si mesmo, em Guernsey.
O arrabalde tem isto:
tatuado na retina é quase tudo,
pois à míngua de uma ideia de futuro
só o presente nele s’excelsa.
Ler oráculos de cabeceira,
por exemplo, enquanto lá fora,
sobre a pele do Índico,
num flamingo, bifurca a sombra.

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