quarta-feira, 31 de agosto de 2011

GRÉCIA-MAPUTO, VOO 7524

Um dos pouco livros que consegui nunca perder foi o Um Adeus aos Deuses, de Ruben A., um escritor ditirâmbico e não poucas vezes genial mas que o leitor médio português, preguiçoso, distraído com êxitos menores e a populaça dos sentidos com que a televisao o aturde, ainda não descobriu.
Aí se lê, na página 25, descrevendo uma visita a Museu Nacional de Atenas: «Não resisti. Disse ao director que para ver bem o museu tinha de me despir. Ele foi extraordinário. O primeiro homem que percebeu o meu desejo total, absoluto, de penetrar naquele mundo. Mandou sair os excursionistas, tocou a campainha do alarme, chamou os porteiros, guardadores idóneos dos Kouroi, trouxe pelo braço um inglês renitente que não percebia ordens correctas, que vivia no absurdo desde tempo imemoriais, e evacuou a salas. Foi uma grande ordem, nunca na minha vida teria sido tão feliz, nem me aperceberia da sensação espantosa, a única verdadeira, que é de se passear num museu tão fundamental na vida de um homem.» Seguem-se cinco páginas de cortar a respiração, de inteligência e simbiose de um homem no reencontro com os seus iguais.
Creio que já me estará vedada a possibilidade de ir à Grécia, de ir reverenciar a liberdade dos deuses, o reino efémero da alegria que em terreno tão pobre e recortado por tempestades aí se celebrou. Creio que nunca deixarei cair uma agulha na orquestra de Epidauro, para o arregalar do olho da Teresa no topo das bancadas, incrédula por ser atingida pela voz do minério.
Resta-me esta viagem por dentro de alguns livros, manuseados com a paixão e o desacato de quem nunca está quieto e às vezes escolhe lugares tão sombrios para ler e meditar. 
Nesta Maputo bantu resolvi, em Julho/Agosto últimos, dar um Curso Livre de Filosofia, a que chamei «Dá-me cem gramas de Platão, mal passados?». O que me obrigou a muitas leituras. Correu bem o curso, teve atmosfera. Das leituras e desgeometrizações a que me vi obrigado, resultou este acervo de notas que aqui vos deixo, moitas ao vento.  
Razões pessoais para ter embarcado nesta jangada grega e vos ter acolhido como fiéis remadores, neste meu curso?
Na Grécia, os deuses riem. Na expressão de Homero, o Olimpo vibra com “o inextinguível riso dos deuses”. Creio que a perenidade do riso dos deuses tem grandes hipóteses de se desdobrar no espaço, atingindo, em vagas, Maputo. E riem de quê, os deuses. Riem de si mesmo e isso é maravilhoso. Há uma cosmogonia tardia, que foi transcrita num papiro alquímico do século III, onde se lê:
«Depois de o deus rir, nasceram os sete deuses que governaram o mundo. Quando ele rompeu à gargalhadas surgiu a luz (…) Gargalhou segunda vez e tudo foram águas. À terceira gargalhada apareceu Hermes, à quarta a geração, à quinta o destino; à sexta o tempo. Depois, antes do sétimo rio, o deus inspirou fortemente, mas tanto riu que até chorou, e das suas lágrimas nasceu a alma».
A minha esperança, que era a mesma de Luciano, é a de que, se os deuses rirem, pode ser que os homens percam a pose e os queiram imitar. Maputo precisa.


1
Giges, personagem de A República, de Platão, é o exemplo do homem constrangido de fora mas sem um intrínseco estofo moral. Apesar da sua fama de homem impoluto e probo, à terceira vez que pôs o anel que o deixava invisível e se inteirou de que não seria visto, cedeu e roubou.
Como está à pinha de Giges o mundinho da administração moçambicana, basta ler a gordas nos jornais. Eu meto o anel – que pode ser uma metáfora do poder – e fico invisível.
Diga-se, como atenuante, que ao grego, para ser, é-lhe vital o papel da reciprocidade do olhar; faltando um dos pólos, natural seria que algo deslizasse na equação. E o Giges estaria ainda aquém dessa invenção da interioridade que é a do homem em diálogo com o seu daimon – o leal conselheiro de Sócrates. Talvez por isso, muito simplesmente, Giges faça o que é admissível quando a ocasião se oferece ao ladrão. A sua moral, fica patente, era um embrulho de celofane e não um sedimento.
A moral só nasce da renúncia, duma consciência e da sua deliberação.
A uma luz simétrica, diz Marcel Conche que só deve ser julgado o criminoso que se mostrou consciente do seu acto. Concordaria, embora sabendo que há zonas da perversidade que se ocultam.
Não se é moralmente atilado por condição. Não há nada de natural no acto moral. Ainda que uma determinada prática possa engatilhar hábitos de benignidade de modo automático, digamos assim, uma conduta que prescinda da volição na virtualidade do agir transforma-se numa morfologia – a qual dispensaria a moral.
A moral é um modo de divergir da oportunidade e só se exerce pelo negativo.
Quanto “à oportunidade” de fazer bem a partir de um cálculo moral, isso só avilta o ser que o pratica.
A moral funda-se quando eu, sabendo-me capaz de matar, capaz de traição, de ser tentado, de olhar o roubo como um pequeno desvio, de imaginar coisas cruéis sobre o outros, renuncio a fazê-lo.
Todos os dias – adúltero, safado, irrespeitoso - renuncio, na secreta invisibilidade do meu diálogo interior. E todos os dias recomeço, desafiando a minha oportunidade.
Não renuncio ao mundo, isto é fundamental deixar claro, apenas digo sim ao direito de dizer não, afirmando o meu livre-arbítrio. Nada me impede de amanhã mudar, não declinando outro convite.
Fazê-lo numa incisiva alegria, no ritmo de quem segue o seu, sem uma marca de má-fé é dar um passo para a ética; a qual podemos conceber como a forma como o homem moral se adapta a cada nova circunstância – que exige uma pragmática – sem perder a face, numa espécie de meta-moralidade.

2
Dobrámos a ilusão de que ver seja conhecer com a eclosão das imagens numéricas. Deitámos cal sobre uma das mais fecundas crenças gregas e ficámos mais sós, porque termos visto, doravante, não nos servirá para nada.

3
Ulisses, apesar de receber Circe e Calipso no seu leito, recusa a imortalidade que esta lhe oferece, rejeitando a naturalização divina. Ulisses prefere permanecer humano e reencontrar Penélope.
Diz Naquet que é essa opção pela humanidade que dá significado à Odisseia: de facto, essa recusa da hybris empresta ao astucioso Ulisses um atributo moral inesperado. E, acrescentaria, Ulisses rejeita trivializar a memória. É o que lhe (nos) dá densidade.
O penhor da memória é o único resgate da trivialização, o mecanismo que nos verte na irrelevância, na poalha do olvido.
Entretanto, não sei porquê, este episódio dá mais sentido a uma afirmação de Alain Badiou: «Defenderei mesmo de bom grado que a obra de arte é, de facto, a única coisa finita que existe. Que a arte é criação da finitude», substituindo embora o termo «obra de arte» pela «memória».



4
Para Vernant a religiosidade do homem, entre os gregos, não toma o caminho da renúncia do mundo, preferindo o seu desenvolvimento estético.
Neste sentido, o cristianismo foi um tremendo passo para a retaguarda, e quanto à renúncia prefiro chamar-lhe obliteração do mundo. E obliteração chegou a um ponto tal que houve teólogos a assegurar que Cristo não defecava, seria o único homem a não enriquecer o estrume.
Entrementes, parece-me terrível a aposta com que as deusas tramaram Páris, o pastor.
Deram-lhe uma maçã, onde se lia a inscrição: «à mais bela», ao mesmo tempo que se ofereciam como candidatas.
Hera propõe-lhe em troca um imenso poder, e Atenas a mais ampla das sabedorias, mas Afrodite ganha a maçã depois de lhe ter prometido a mulher mais bela do mundo. Helena de Esparta.
Como não ver aí que Páris terá de escolher entre os três princípios que regerão a arte na Grécia: o da imitação (só o seu reiterado domínio gerará o poder como valor), o moral (o valor é aferido pelo efeitos que ela produz), e o estético?
Impregnado pela cultura grega, Páris só podia escolher a oferta de Afrodite.
E a perversidade da escolha a que Páris é obrigado faz-nos subentender a verdadeira dúvida que motivou as deusas: alguma vez conseguiremos fugir a nós mesmos? Quem se descontamina do que o impregnou?    

5
Um Deus é, escreve Herberto Helder, “uma potência que se manifesta pela unidade rítmica”, uma espécie de inteligência não adstrita – como o inconsciente – que nos fascina, hipnotiza, e dispersa a atenção até nos perder no extravio de si mesmo.
E acentua o poeta: «Deus dorme, dentro de um sono pesadíssimo e por isso pesa tanto aquela cabeça».
E nós somos os seus sonhos dispersos.
O que Platão corrobora nas Leis: «os deuses foram-nos dados não só como companheiros de festa mas também para procurarmos o sentimento do ritmo e a harmonia unida ao prazer, com a qual nos põem em movimento e dirigem os nossos grupos, enlaçando-nos uns aos outros com as canções e a danças».
Além do ritmo, os deuses emprestam-nos a sintaxe.
Cabe-nos a nós, sacudir ou não o molde, ou até criar outra unidade rítmica.

11
Sentiam-se fracos como o junco, os deuses gregos. O temor de Urano é que lhe dava a grande boca. E a possibilidade de serem junco na margem do Estige, o rio que delimita a metade inferior do Hades, o Inferno, apavora-os totalmente, aí consideravam total o desamparo do olvido.
O que nos lembra um excerto do Fausto de Pessoa:
«O segredo da Busca é que não se acha.
Eternos mundos infinitamente,
Uns de outros, sem cessar decorrem
Inúteis; Sóis, Deuses, Deus dos Deuses
Neles intercalados e perdidos
Nem a nós encontramos no infinito.»
Os deuses não passam do hólon inferior de outro hólon superior.
Os gregos consideram o mundo como um imenso mise-en-âbime e no escudo de Aquiles pode Platão encontrar bons motivos para censurar Homero pois a sua fractalidade opõe-se à configuração do limite em que navega o mundo da Ideias. 

12
Das coisas mais perturbadoras na relação entre deuses e homens na Grécia é que se os deuses comunicavam com os homens através dos sonhos, nada garantia que este canal fosse fidedigno: os sonhos provocados pelos deuses podiam ser enganadores.
Como no caso do sonho que precipitou Agamémnon para o assalto a Tróia, a qual estaria por um fio, o que se revelou falso, uma mentira do Deus.
Está visto onde Freud foi buscar a ideia para encarar os sonhos manifestos como puros enganos, dissimulações com a chave lançada ao mar.

13
O sangue dos deuses chama-se Ichór. Nome de pneu. Estão explicados os Grandes Prémios da Fórmula 1 e o seu fascínio – que sempre me passou ao lado. 

GASTÃO CRUZ: OBSTINADO RIGOR


Gentilmente, ofereceram-me Os Poemas, a recolha de Gastão Cruz, onde se reúne tudo o que escreveu de 1960 a 2006.
Há dez anos que não tocava em Gastão Cruz.
Foram três horas de labaredas. Reconciliei-me com sua justa medida, o seu verso tão rente à lâmina. Tem poemas escultóricos, donde a palavra, mesma a que nomeia a água, ressalta, corpórea, tensa como a linha de nylon que encontra o que perdura.
Nem sempre o acho à mesma altura mas no seu melhor é mesmo do melhor que em Portugal se escreve.
E (digo-o à vontade porque pessoalmente não somos um exemplo de estima mútua) diante da sua expressão tão enxuta e verdadeira sinto-me um tagarela, um gaiteiro – olho as mãos e vejo-as perfurada de miragens.
Aqui vos deixo alguns poemas:



Às vezes despedimo-nos tão cedo
que nem lágrimas há que nos suportem o
peso da voz à solidão exposta
ou
de Lisboa no corpo o peso triste

Às vezes é tão cedo que nos vemos
omitidos
enquanto expõe
o peso insuportável do amor
a despedida

É tão cedo por vezes que Lisboa
estende sobre os corpos o desgosto

Com os dedos no crânio despedimo-nos


ALGUM DIA

Algum dia o teu corpo como um copo
na paisagem da mesa ficará
deitado na toalha
Chegará
alguém para levar o que estiver
a mais  Ele estará


ONTEM NA BOCA DO INFERNO

Ontem olhando o mar que penetrava
sob as escarpas num rumor difuso
de fim de primavera quando a brava
cratera do inverno esquece o uso

dado às águas, enquanto te escutava
como um vulcão de sentimento (escuso
falar-te do amor de que essa lava
de palavras mortais movia o fuso

nas nossas vidas oscilantes) vi
novamente a voragem no teu rosto
ao inferno descido. O mar em ti

reflectia-se não como o reposto
equilíbrio das águas na estação
visível mas como água da paixão


O SOL É UM COMETA

Um astro rápido atravessa a água
do céu de maio não como um destroço
das primaveras que o passado esmaga
é um leão que treme na luz de ouro

O sol é um cometa quando o vejo
com os músculos de oiro do meio-dia
dilacerar a água que o protege
tal como o corpo dilacera a vida


NA POESIA

Na poesia procuro uma casa onde o eco
existe sem o grito que todavia o gera


SENTIMENTO FIXO

2
Preciso que me impeças
de perder-me
ainda que perder-te seja a dor
de que preciso

Na manhã parada
do outro lado da janela está
o nosso tempo
erva cortada
   

domingo, 28 de agosto de 2011

LUCAS & PIANOLA, LIMITADA

A sala onde pela primeira vez ouvi o joao lucas

JOAO LUCAS, the big one, Don Lucas é um compositão, um músico com poeira cómica nos bolsos – altivo e desarvorado, como todos os que confiam que o dom é também generosidade. Mas o melhor é ouvirem. Aqui. Leiam, ouçam e rendam-se, meus caros.
Eu cá fiz-lhe este poema.


ELOGIO E DESSIMPLIFICAÇÃO DE JOÃO LUCAS

À luz de um coto de vela, embute-se a alba
na brisa nascente; a noite, adivinhando
fissuras na casca do seu ovo, retira-se,
furtiva, cingida ao voo da garça. Já lhe fui

mais apegado, mergulhador em recifes
invisíveis, guarda de bengaleiro
nos bares de atribulação lunar.
Um copo era um farol nocturno!

E não via que a noite é um anfitrião
enlouquecido pela paixão de dissentir,
rato que fosforesce assim que vê águia.
Prefiro agora discernir entre uma esquina

e uma curva, e surpreender o vento
a dar o litro no estofo da floresta. Não
é uma mera questão de estar lúcido,
de estar apto para lhe tactear o recorte, mas

o reconhecimento: a luz é o maior mistério,
um palimpsesto onde se sucedem graus, tons,
rasgaduras e sedas, e sondá-la é um perpétuo
inacabamento. No fundo, não enxergávamos

que a noite é-nos intrínseca, como o bigode
que amiúde aparamos, e que só a luz
nos é dada, decerto para capotarmos
no grau de inadaptabilidade que nos distingue

e supera, até valorizarmos o que por nós
espera para ser crepitação e confluência.
A noite é o Urano que devora os filhos
– imagine-se – à procura de dentes de ouro.

Aspirado pelo peso do seu próprio impasse.
Quem se especializa na noite, no seu íntimo
não descola do plinto da memória,
gargalo que só admite o ensimesmar-se.

Prensa de nuvens, a luz ressalta no clamor
dos meios tons, moldada em chuva,
em áleas de jacarandás, em verniz e fuligem.
A tudo abraça, inclusive o lixo, e na sua extensão

aprendes a venerar o que desconheces.
Não há nisto nada de exclusivamente solar,
de aplausos sem fim, ou de isenção de melindres,
simplesmente a luz abraça o vário, e dança

no meio da turba, ao contrário da noite
que se oculta atrás de uma matilha de sombras.
O que me sussurram, noite dentro, vezes sem conta,
o timbre, os dedos nítidos de João Lucas ao piano.



COLÓQUIO COM A JADE 6

matisse



Quem tem filhos pequenos… Como me calham duas, uma com sete e outra com quatro, não é raro ouvir chiar os pneus na aparatosa curva duma pergunta de calafrio.
Ontem andou tudo em torno da morte.
Como se diz a uma criança, angustiada pelo que ela mesmo formulou: podes estar descansada, és poeira e à poeira voltarás?
Então instala-se o «sistema das crenças comparadas». Os maias dizem que depois da morte isto e aqueloutro, já quanto aos egípcios etc. e tal, não longe disto andam os hindus…
Interrupção da Luna:
a mãe é hindu?
Esclarecimento:
não, a mãe é indiana, goesa, mas não é hindu…
Observação da Jade:
mãe, que é te aconteceu?
…prosseguindo, para os hindus - esses que por avaria a mãe não chegou a ser…-, depois da morte podemos voltar muitas vezes…
Regozijo da Luna:
Uau, muitas vezes é muito melhor que uma…
Inquirição da Jade:
Vamos ter a mesma família?
Resposta cautelosa:
bom, terás outra família de quem vai gostar muito...
Pausa para arquear a sobrancelha, antes do grito agoniado da Jade:
…eu não quero outra família!
Desata num pranto. A irmã secunda-a.
O pai à cata de algo no «sistema comparado» fica entalado num soluço, à mãe salva-a o apito da chaleira…
Acho que hoje vamos faltar à missa. Está um dia de truz, etc. e tal.  


sábado, 27 de agosto de 2011

PAGAR O PREÇO


Que alavanca me pode restituir a palavra viva? Porque as palavras deslizam rapidamente para o pântano, o lugar-comum, antes de se engessarem, na casa das múmias.
Que alavanca pode restituir a palavra viva?
Nietzsche passava um serão com uns amigos. Um deles deu como fanfarronada a história de Mutius Scaevola, um jovem romano que entrou no campo inimigo do Etruscos e matou por engano o secretário do rei Porsena, em vez do próprio rei. Para se castigar do erro, Scaevola meteu a mão num braseiro.
O episódio não colhia junto dos companheiros do filósofo, incrédulos. E então Nietzsche dirigiu-se à lareira e pegou num carvão em brasa, fechando a mão sobre ele, enquanto cerrava os dentes para não deixar escapar um grito.
Esta história, já conhecia, duma biografia.
O que desconhecia era o que se sucedeu e leio agora: «Com uma destas teimosias de criança que muitas vezes constituem o instintivo esboço de uma disciplina do querer, durante anos conservou aberta a chaga», conta Élie Faure.
E percebo então que aquilo que pode parecer uma doidice, um sadomasoquismo declarado, explica alguma da aragem que se sente na leitura do filósofo de Assim Falava Zaratrusta.
Em presença da dor cada palavra é mais viva, porque arrancada a uma intensidade sensorial que, para ser apaziguada, obriga a uma paralela exactidão expressiva. Claro que ninguém se livra da dor duma queimadura recitando um soneto de Shakespeare, porém a pouca disposição para jogos de linguagem que assiste a quem sofre a dor, obriga a soltar o verbo numa única oportunidade, certeira como a pincelada num fresco. Não há retoques diante da dor, embora a palavra certa não a faça esquecer talvez a sublime. Como a pintura ajudou Frida Khalo a suportar estoicamente o desconjuntamento da sua coluna vertebral.
Nietzche usava a chaga sempre aberta como uma disciplina, um enxerto de tragédia na carne, e quando falava na dor, ou na alegria, no apaziguamento ou na revolta, era sentido. Ninguém discorda de nada com uma dor enfiada na carne se não discordar de todo; ninguém se diz eufórico, com uma dor entalada na carne, se tal não for verdadeiro.
Mais tarde Nietzsche, formulará que «a doença é um ponto de vista sobre a saúde», que é já uma forma de distanciamento sobre o sensível, e que há-de ter treinado na longa duração deste episódio.
Escrevo isto e ouço a Luna, que tem sete anos, lá dentro a reclamar com o gato, porque, diz, «o Sebastião é um lambareiro…» (roubou-lhe uma salsicha). Gosto que ela tenha achado uma forma mais viva e expressiva de acusar o gato sem ter caído nas fórmulas simples mas gastas de «comilão», ou «guloso». Mas quanto tempo lhe durará esta descoberta das palavras antes de se enfronhar nas fórmulas?
Por que o problema é este: não estamos dispostos (como o Nietzsche) a pagar o preço. 

CORTÁZAR: AS ARMAS SECRETAS



Julio Cortázar é - com Sabato - o meu argentino. Um dos meus amores mais danados. A Cortázar ninguém o dá como poeta. E a sua obra neste género é curta, em proporção com a prosa – onde foi genial. E Cortázar sofria porque esta sua vertente era depreciada por críticos e amigos, sempre apressados a fazer comparações e desconfiados, eternamente desconfiados, diante de quem se marimba para os géneros, ou em todos habita. Também eu sei, diariamente, o que é visitarem-me o blogue e depois virem bater-me nas costas com uma ressalva: você como cronista é assim e assado, como poeta é que deixa muito a desejar, ou ao contrário, da sua poesia gosto, da prosa é muita verborreia e etc., numa desencontrada praça de opiniões que me deixaria tolhido se eu não seguisse cegamente o conselho de Ezra Pound: «não ligar a nenhuma opinião que não seja a de quem tenha escrito, de facto, algo de notável». Ora Cortázar era poeta, e excelente, não é Lezama Lima, mas quantos são?, e Cortázar, que não seria o narrador que é sem este lastro poético,  versejava como quem não quer a coisa e está em conversa com um amigo, num rigor que faz da presença e da partilha intensidades maiores.
É um homem sábio, à conversa, e isso nos basta.
Aqui vos deixo um primeiro lamiré, três poemas de amor.   


OUTROS CINCO POEMAS PARA CRIS

1
Tudo o que precede é como os primeiros momentos
de um encontro depois de muito tempo: sorrisos, perguntas,
lentos reajustes. É estranho, pareces-me menos morena
que antes. Melhorou enfim, a tua tia-avó?
Não, não gosto de cerveja. É verdade, tinha-me esquecido.
E por baixo, ascende no monta-cargas de sombra, devagar,
outro presente. No teu cabelo começam a agitar-se as abelhas,
a tua mão roça a minha e deposita nela um doce favo
de fumo.Ja
cheira a sul.

2
Às vezes pões
uma cara de exílio,
esse que precipita uma voz nos teus poemas.

O meu exílio é menos duro,
guarnecido de defesas,
mas quando te levo pela mão
por uma ruela de Paris
queria tanto que o passeio desembocasse
numa esquina de Montevideo
ou na minha rua Correntes

sem que ninguém viesse
exigir-nos os documentos.

3
E às vezes calha acreditar que poderíamos
conciliar os contrários
entrosar-nos no centro imóvel da roda
sair do binário -
ser o vertiginoso espelho que concentra
num vértice derradeiro
esta dança cerimoniosa que dedico
à tua presente ausência.

Lembro Saint-Exupéry: “o amor
não é olhar quem se ama
mas sim olharem os dois numa mesma direcção -“

podia ele lá suspeitar que tantas vezes
os dois olhamos fascinados para uma mesma mulher
e que a sua esplêndida, feliz definição
cai de costas como uma boneca de trapos.

4
Pressinto que não te quero
que somente quero
a impossibilidade tão óbvia de querer-te,
como a mão esquerda
que fica cativa dessa luva
que vive na direita.

5
Ratito, penugem, meia-lua,
caleidoscópio, barco na garrafa,
musgo, sino, diáspora,
palingenesia, feto,

isso e o doce de abóbora,
e o acordeão de Troilo e dois ou três
zonas de pele aonde
faz ninho o alcião,

são o que contém
a tua cruel definição inalcançável
são as palavras que guardam a substância
de que estás feita
para que alguém beba
e possua e arda convencida
de que te conhece inteira,
e de que não passas da Cris.


OS AMANTES

Quem os vê andar pela cidade
se todos estão cegos?
Eles levam-se pela mão: algo fala
entre os seus dedos, línguas doces
lambem a húmida palma, correm pelas falanges,
e acima fica a noite crivada de olhos.

São os amantes, a sua ilha flutua à deriva
por entre margens de chorões, acosta em portos
que se levantam entre lençóis.
Tudo se desordena através deles,
tudo aí encontra a sua cifra escamoteada,
apesar deles nem sequer darem conta
que enquanto se engalfinham na sua amarga arena
sucede uma pausa na obra do nada,
o tigre é um jardim que lança os dados.  

Amanhece nos camiões do lixo,
começam a sair os cegos,
o ministério abre a suas portas.
O amantes rendidos olham-se, tocam-se,
uma vez mais, antes de exalarem o dia.
E estão vestidos, já se extraviam pela rua.
E é só então
quando estão mortos, quando estão vestidos,
que a cidade os recupera, hipócrita,
e lhes impõe os deveres quotidianos.

FINAL
Lucila uma vez mais o reclamo
nascido do canto trivial e da guitarra,
da dupla solidão que nos amarra,
noite após noite, num bar, e não te amo,

não é amor isto, nada mais é que o Amo
com a tua pele, a tua saliva, com a garra
que delicadamente nos desgarra
de cada vez que em teus músculos me derramo.

Dois corpos que rumorejam a sua vigília
- humilde e obstinado sentinela
do simulacro deste amor jazente -

e em amarga sujeição se reconciliam,
na equinocial sombra que te modela,
com a esvanecida aura do ocidente.