sábado, 25 de fevereiro de 2012

O QUE DESIGNA UM ICEBERG


Por vontade própria e alheia tem andado o Raposas ancorado. Retomemos a navegação:

Como sempre, na primeira aula, bato na tecla duma necessidade de mergulhar na escuta, de um despertar na palavra, e reforço a necessidade de nos aventurarmos no dicionário como num safari de luxuriantes colibris. Pelo menos cinco ou seis vezes ao dia, acentuo, mentindo com o meu exemplo, que se não descubro cinco palavrinhas novas por dia me sinto um abajur depreciado pela virilidade da sua pera, etc., etc. E insisto que me interrompam, caso nas minhas deambulações ocorra alguma palavra que eles desconheçam. Não se inibam, não se inibam… E entrego-me ao fluxo, desopiladamente, alternando a gaguez com blocos de alguma fluidez e duma impensada pertinência, desemperrando a língua… e uma aluna levanta o dedo. Diz, convido, e ela pergunta, dr., O que quer dizer iceberg, O que designa um iceberg, repisa, num orgulhoso assomo de erudição. O que designa um iceberg, ecoa no meu crânio, ao ralenti. Não sei o que é, conclui. Não viste o Titanic, pergunto, angustiado. Ela não se deixa esmorecer, Vi até metade. Viu precisamente até ao momento em que aparece o iceberg, o que é o mesmo que não ter visto. Sinto uma gota de suor frio a sulcar-me as fontes. Ressalvo, é natural que desconheças o que seja um iceberg, és uma rapariga dos trópicos. Mas por dentro estou gelado com o esforço de não deixar transparecer que talvez não seja admissível no século XXI que um estudante universitário, em qualquer parte do globo, não saiba o que é um iceberg.

Lembro-me de um choque semelhante em Quelimane quando um aluno, que teve de ler uma palestra de Merleau-Ponty, me trouxe uma lista de palavras-mistério para eu lhe desvendar, havendo, no meio de alguns conceitos, um aguaceiro de palavras corriqueiras, que culminava num cirro cinzento e pesado, a única palavra que ele se havia esquecido de apontar e que agora pronunciava de viva voz: professor, o que é “espontaneidade”? O mesmo aluno que, num jantar de convívio que tivemos depois, já alegrete com um copito, me falava do mar vertical, metáfora que eu aproveitei para definir a poesia.

Mas a mais mortal talvez tenha ocorrido seis ou sete meses depois de ter chegado a Maputo. Fui apresentar um livro de contos de Albino Muianga, e conto uma história com o Picasso.

Um soldadito vem de fim-de-semana a casa e passa por uma galeria onde se inaugurava uma exposição do basco. E fica logo de cabelos em pé com as mulheres do quadro que está exposto na montra, com os rostos de frente e de perfil ao mesmo tempo.  E resolve ir dar uma lição ao pintor. Entra abruptamente pela galeria, acotovelando à esquerda e direita, e pergunta estentóreo, onde está o bardamerda do pintor? O Picasso acolhe-o sorridente, com a sua boina basca e uma taça de vinho. Escuta o arrazoado do soldado sobre os distorcidos corpos daquelas mulheres e a sua falta de realismo e então pergunta brandamente: O amigo tem namorada? A pergunta desconcerta o soldado, que anui, tenho. E tem uma fotografia consigo, pede o pintor, amavelmente, num tom que não admite recuo. Tenho aqui, e o soldado tira a carteira do bolso, abre-a e mostra a fotografia da namorada, que passa imediatamente para as mãos atentas do pintor. É muito bonita, observa o pintor depois de uns segundos de silêncio, muito bonita mesmo… pena é ser tão pequenina.

Isto para explicar que aceitar a arte implica aceitar as suas convenções, de igual modo que se aceita que aquela imagem da fotografia “seja” a pessoa que retrata.

Contei esta história, que é no mínimo risonha, e fiquei siderado pelo silêncio gélido que se seguiu na plateia, que reunia umas dezenas largas de pessoas, quadros, intelectuais e médicos - a profissão do Aldino.
No beberete que se seguiu houve uma cirurgiã que se apiedou da solidão do apresentador e se aproximou calorosa para me perguntar: o Picasso é aquele artista que pintou aquele menino das lágrimas, não é? Falava-me de um poster absolutamente foleiro e kitsch que forrou as paredes da pequeno-burguesia urbana dos anos 70. E então fez-se-me luz, a maioria da gente ali reunida não sabia quem era o Picasso.
Para espanto meu, descobria um sítio no mundo – muitos, verifiquei depois – onde não se sabe quem é o Picasso. E não sei se tem mal, embora os intelectuais na Europa saibam quem é o Malangatana. Um lugar onde um jovem universitário desconhece o que seja um iceberg. Nunca estaremos suficientemente advertidos para as nossas diferenças.

1 comentário:

  1. Querido "camarada" - com aspas, não vá dar-se o caso... - fico feliz com o teu regresso. Não tens a sensação que acabaste de chegar a Maputo? Tem o seu lado bom, digamos, que é essa espécie de espanto que se renova - enquanto o motivo do espanto lá está, pedra (a não ser que seja uma pedra a cujo interior é impossível aceder por nós, seres toscos...). Abração,

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