domingo, 6 de maio de 2012

COMO PÔR OS OLHOS NO CORAÇÃO?

Autismo seria sempre, fosse qual fosse o ano, um dos melhores livros da sua safra.  

Enquanto editor publiquei várias antologias dos concursos de literatura promovidos pelo Clube Português de Artes e Ideias. Vária gente hoje famosa começou aí, como o Ondjaki ou o José Mário Silva ou o Luis Peixoto (que já havia editado a plaquete Morreste-me), nessas antologias que eu editei, e têm felizmente confirmado o talento que nós (elementos do júri) neles detectámos. Mas desse grupo de 3 dezenas de autores haviam dois que a, mim, pessoalmente, e em anos sucessivos, me enchiam mais as medidas, o Vasco Pereira Marques, que coloquei no Expresso, e de cujo labor literário não soube mais nada, e o Valério Romão, talvez o mais original de todos. Ao Valério ainda consegui publicar-lhe, no único exemplar da minha revista Construções Portuárias, um capítulo de um livro experimental que ensaiava várias formas diferentes de um humano se transformar em faca. O Eduardo Prado Coelho reconheceu imediatamente a qualidade da prosa de Valério e apelidou-a de magnífica, numa longa recensão que fez à revista.
Depois eu vim-me embora de Portugal e perdi-lhe o rasto, só dei conta de que nesses dez anos de interregno o Valério não havia publicado qualquer livro, o que me fazia espécie, pois era de facto aquele em que acreditava mais. Um dia, acidentalmente, deparo com o blogue dele e fico siderado com o que leio: era um diário de um pai debatendo-se com o drama de um filho autista. Afinal, fora essa a estrela negra que se atravessara no caminho do imenso talento de Valério.  
Autismo é, pois, por um lado um romance-catarse com a autoridade de quem está por dentro do abismo e por outro nele se anuncia, com o gosto das séries que caracteriza o Valério (o primeiro livro que publicou são seis variações em torno do medo) o começo de uma trilogia a que deu o nome de Paternidades Falhadas, de que este constitui o primeiro volume (já escreveu o segundo); e se o romance me parece magnífico (para repegar no adjectivo de Prado Coelho) é porque, para além de estruturalmente perfeito, nele se instaura uma espécie de neutro elocutório que o resguarda do excesso de pathos que seria o risco de uma narrativa deste tipo.
Ou seja, Autismo é um grande romance porque além de uma história que agarra e que expõe pela primeira vez em Portugal, que eu conheça, os bastidores de um drama excruciante, exibe uma gestão das emoções absolutamente ímpar e não faz da violência do seu caso um gancho ou um modo de manipulação das emoções do leitor, estando, pelo contrário, o seu tema ao serviço de uma máquina narrativa de uma eficácia soberana e que se movimenta como um thriller, não obstante a sua expressão coral.
Valério enfrenta o problema de frente mas não explora o sensacionalismo que se podia associar ao tema e nem intenta penetrar no mistério do autismo (a sua personagem masculina não borda em torno da questão e rebela-se como um anti-Job), antes minucia os meandros da devastação que, como um efeito colateral, vai minando a relação familiar, inervando-a com a “afasia” antí-rítmica duma desconexão que se converte numa opacidade metafísica.
Diz Agamben que «onde acaba a linguagem começa, não o indizível, mas a matéria da palavra (…) a substância lenhosa da língua» (Ideia da Prosa: 29), virtualidade que se não nos imuniza do enigma abre ainda uma janela nas trevas. Mas o autismo é a erupção de um muro que desponta no seio da própria ilusão de comunicação entre os seres, dado que lhe esboroa o porvir da relação: o eixo da reciprocidade. E o combate aí torna-se equivalente ao adquirir uma fé face à alteridade absoluta: é-se capaz ou não. Autismo é um huis-clos para cinco personagens: Rogério e Marta, Henrique (a criança), Abílio e Amélia (os avós maternos) e diversos figurantes, dado que no jogo das espectativas-limite em que actuam as personagens o mundo inevitavelmente introprojecta-se, anula-se ou fantasmeia-se.
Das 4 ilustrações de Alex Gozblau que antecedem a narrativa e que inteligentemente mostram quatro brinquedos isolados (porque a criança não os conecta), carentes de relação, há uma que prefiro: a da bola amolgada a que o ar já falta. Nada podia ser mais elucidativo quanto ao drama que atinge o casal: aquela bola morre sozinha, como aqueles pais diante do que não ousam sequer formular, implorando por um toque que lhe restabeleça um vínculo, o jogo, o sentimento de partilha; morre de anorexia.
O Valério joga as suas cartas como se fossem lâminas, sem concessões, aliás o livro começa por nos tornar antipático a primeira personagem apresentada (o avô), e nos levar a suspeitar de que estamos diante de um pedófilo, para depois verificarmos que tal era um McGuffin, e que a verdadeira história começa quando a funcionária da escola o informa de que o Henrique (o neto) fora atropelado. A partir daí o enredo evolui para o incrível relato do casal a tentar obter informações no bloco de urgências do hospital, sem conseguir sequer lá penetrar, situação kafkiana, o que vai desencadear uma série de flash-backs e flash-forwards que perfazem o itinerário sobre brasas para que a diferença do filho os atirou.
Autismo é um livro duro, porém cheio de densidade humana, as personagens aqui não são de papel, caricaturais; lê-se facilmente, apesar de sustentar vários níveis de leitura (por exemplo, até a paródia política nele tem lugar: o primeiro dos médicos-fazedores-de promessas que tece um longo formulário de respostas-prontas para a resolução de tal caso bicudo chama-se Miguel Relvas e a sua retórica é-nos familiar); sendo um livro que dá lebre por lebre e cuja leitura constitui uma experiência que não se esquece.
Bastaria o bloco do hospital, cento e tal páginas delirantes, para nos demonstrar a capacidade romanesca de Valério, simultaneamente cirúrgica no detalhe e hábil no modo como articula a acção e a reflexão das personagens no mesmo parágrafo, habilidade proustiana e de que poucos são capazes em Portugal. E o livro arrasta-nos (autenticamente) com a força da sua narração de surpresa em surpresa até ao achado final, que não se pode revelar aqui, mas que deixa o leitor sem fôlego.
Refira-se ainda a qualidade da escrita do Valério, dotada de um bom espectro lexical e muito inventiva, rápida mas não condutivista, o que faz dele um narrador fluido mas com uma agilidade polifónica; ao que acresce o seu invejável domínio técnico sobre as estruturas do romance. É preciso dizer mais para se perceber que estamos diante de um caso de futuro? Veja-se o modo como Rogério descreve a educadora de infância:
«(Uma desavergonhada completa, incapaz de fazer um trabalho decente, incapaz de ver um palmo para além da burocracia que lhe entope as sinapses num desaguar de esgoto, uma mulher ressequida de homem e de hormonas, um atafulho de base esborratada de um batom que lhe rasga a cara de lado a lado.)» pág 46;
ou este naco com que o narrador define uma geração:
«Eles eram os escolhidos, a fruta da época, o reduto e o enclave derradeiros no qual uma longa linhagem chamada civilização ocidental acabava o seu demorado processo de decantação. Ao mesmo orgulho de pertencer ao justo meio intelectual, sobre o qual se agigantavam em discussões sem fim acerca de baudelaire ou de nietzsche, contrapunha-se a incómoda sensação de serem, de algum modo tão trágico quanto injusto, as borras da história, aqueles que ninguém coroaria, por para eles o plano do gosto funcionar de modo inversamente proporcional ao plano do poder. Se algum deles se lembrasse de uma definição adequada para a geração a que pertencia, perdida entre o trabalho, a filosofia, a literatura, a paternidade e o vinho, seria, porventura, a escória que brilha. Talvez o mais ousado daquele  grupo, um dia, entre duas ressacas e a espera de um voo low-cost em sempiterno atraso, vertesse num poema aquele amargo de boca que não advém do estômago ou da vesícula, ou da deficiente condição do fígado ou mesmo de um tumor pancreático tão inesperado como fatal. Aquele travo de derrota nascia por debaixo das meninges, lá onde Freud encontrara, num monte indistinto, tomates, pila e vagina, um território vasto e árido onde se intersectavam Pasolini e Alice no País das Maravilhas, alumiado de quando em vez por uma bebedeira de afinamento solene ou uma pedrada que fugisse ao controlo.» pág. 72:
ou um de vários flashes de Rogério que incidem na difícil relação com o filho:
«Ontem dei por mim a chorar à frente do H., sem ter por onde me esconder, porque a mãe dele estava a passar a ferro no quarto e eu estava com ele a ver desenhos, e preferi que fosse ele a ver-me do que a mãe dele, até porque eu e ela estamos desaguisados.
Enquanto eu chorava com uma mão à frente dos olhos, enchouriçado, a soluçar baixinho, o miúdo pulava alegremente em cima do sofá, ora porque a girafa fazia umas tropelias com o leão mais o hipopótamo ora porque os animais todos se metiam dentro de barcos e de naves, e de fora aquilo parecia uma montanha-russa em constante rodopio. Eu chorei uma hora.
Depois de alguns minutos perdi a vergonha e chorei como um homem, mãos nos joelhos, lágrimas a correrem pela cara abaixo, para cima do tapete de lã. o H. não deu por nada. Quando acabou o filme, ele pegou-me na mão para levar-me à cozinha, queria água. Enquanto lhe dava um copo de água, eu soluçava e assoava-me.
Eu podia ter ficado assim para o resto do tempo, que ele continuaria a portar-se comigo da mesma forma.» Pag.263
Este livro ainda tem a enfrentar outro problema: o da sua divulgação. Num sistema suicida em que os livros duram duas semanas nos expositores das livrarias esta é uma questão vital. E temo que fique prejudicado pelas ínvias razões de ter sido publicado numa pequena editora que faz de cada objecto um caso de estima e de qualidade gráfica inexcedível, o que se por um lado é aplaudido por colecionadores e por um nicho de mercado mais exigente, por outro levanta ciúmes num país mesquinho, que não acarinha quem faz bem o seu trabalho. O prémio de editora revelação que foi atribuído à Abysmo talvez tenha sido prematuro – era quase impossível não lhes dar o prémio pois fazem os livros mais bonitos no mercado, mas… - e leve os jornalistas a desligar a sua atenção sobre a editora no momento em que ela descola para uma aventura comercial continuada e precisa de ser apoiada. Convinha que este livro, precisamente este, com a qualidade bruta que oferece não fosse o primeiro a pagar as favas da perversidade do niquinho país que temos.
Autismo seria sempre, fosse qual fosse o ano, um dos melhores livros da sua safra.   


5 comentários:

  1. Vou passar a mensagem. Importantíssimo, falar destes dramas maiores sem auto-comiseração, com as "lâminas" expostas num jogo de cartas sem vencedores nem vencidos. Impressionante a qualidade. De resto, tudo o que vem de ti, é pia baptismal para mim.

    Tens o contacto dele? poderíamos divulgar o trabalho no portal Boas Notícias, que trata muito e com muito respeito os seus "convidados".

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  2. Um livro fabuloso. Li de um fôlego. Acabei como se tivesse levado um enorme murro no estômago. Um escritor a acompanhar. Aguardo com impaciência o resto da trilogia.

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    1. ora, ainda bem jorge que n\ao vendi gato por lebre. o valerio vai ficar contente

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  3. Avô Zé João Ventura19 de julho de 2012 às 12:50

    Li dum fôlego. EStou ansioso pelo 2º. Obrigado Valério.

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  4. Excelente texto o seu.
    Também a mim me tocou muito o Autismo e o estilo do Valério.
    Bem haja pelas suas considerações e pelo seu exemplo para este aspirante a escriba.
    os melhores cumprimentos

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