domingo, 1 de julho de 2012

CODORNIZES E OUTROS DESPOJOS BUCÓLICOS

                                                                   


 Jindrich Sreit

                                                                                          Da infância, lendo Hugo Claus
   
1
O chapinhar das ondas, o lamiré perfeito.
Beijá-la? Galvanizar o ninho a ser roubado.


2
O cabide de plástico – para uma camisa? – rasga a relva, é a mais insólita das dedadas.
O viçoso tapete verde, de um extremo a outro, tem para cima de dois campos
de futebol.  Pela alba, o orvalho reanima o luzeiro.
De súbito, a sola humedecida pisa o cabide, laranja como um argueiro. E sobre ele, periclitante, indecisa, a joaninha.


3
O oblongo dorso de quitina acomodou-se ao solo. Sobre a pança do escaravelho – uma membrana onde encaixam cinco patas que espanejam o ar – assentaram estendais as formigas, indóceis topógrafos de mandíbulas que tudo aplainam.


4
O recreio da escola: galinhas e as verdoengas caganitas. Confinados a tão pouco, ao perímetro de cimento que as galinhas ainda não haviam colonizado,
aprendíamos que nada nos era destinado; mínimos e fugazes pingos de sangue
na neve. Às vezes alguém levava castanhas e as mãos estalavam, «quentes e boas».


5
O moinho velho, já sem pás. Aí se escondia o contrabando. Dizia-se. Nós untávamos de visco as moitas, a amoreira e, receosos, espreitávamos na fechadura da empolada porta azul, antes de, de riso preso, urinarmos no centro
da mó enterrada no chão.
Até que - já não lembro quem – um de nós jurou que a mó lhe lembrava o olho de Deus. 


6
Soubesse eu o nome daqueles caules felpudos que nos chegavam ao peito, um prado imenso de flores roxas e incógnitas, apartadas de nós pelo desbaste das varas com que atalhávamos o caminho para o canavial.
O entrecortado marulhar do ribeiro distraía-nos e não raro estrelejavam sapos sob as nossas solas, em barda naquele rincão.
Cinquenta metros depois a conduta do esgoto cortava as águas e marcava o início da cidade.

7
Não havia figueira como aquela, oblíqua, enclavinhada no rebordo dum socalco
- do seu tronco dependurava-se um cabo, a nossa liana de Tarzan.
Miúdas, futebóis, ofensas mortais e o planeamento do desforro, sob o seu pálio
governava-se o mundo, fumavam-se as primeiras beatas.
Ainda as auroras não tinham rugas.

8
Reguadas e ponteiradas: eis a prévia condição para tornarmos ao cói,
isolado pelo canavial do desconcerto do mundo.
Já deitávamos as beatas na caixa das esmolas.


9
Era uma bola de fogo donde emergia uma cauda de avião. A trajectória
não deixava dúvidas: caíria na Mata dos Medos.
Revezámo-nos toda a semana, aos pares, e a batida
foi extensa e supervisionada pelo fragor do mar.
Mas a mata conservou fechados a sete chaves os seus segredos.
Na busca, recolhemos o Tripé, um cachorro a quem a maldade
humana havia decepado uma pata e que em nós achou
um centavo de ternura.
Até que alguém lhe chegou o isqueiro.


                                                                           Bert Hardy
10
Entre outras proibições, era-lhes vedado comer vagem ou coração, ser o primei-ro a cortar o pão ou autorizar que andorinhas fizessem ninhos nos seus tectos. Pitágoras não transigia.
Eu, todas as Primaveras aguardava com excitação que as andorinhas fizessem ninho na nossa varanda. Virá daí a minha enferma antipatia pelos números.


11
Valores como saber manter fresca a manteiga sem frigoríficos, medir os brilhos numa tina de azeitonas, ou ter um cão treinado para ir ao lugar roubar o torresmo, o toucinho, confiava o lenhador reformado enquanto amolava o machado e lhe apreciava o fio de luz – tudo o que de uma vida para outra não se repete. Um dia, contou, moendo vagarosamente o pão com requeijão, a meio dum tronco, a meio do lanho, amoiteceu-me o futuro. A lâmina ainda lá está presa à embravecida, desimpedida, manhã.


12
Tão pobre o vocabulário do cuco. E contudo, em casa alheia, faz fortuna.


13
À primeira, o bom quinhão de favos de ouro na caixa de sapatos foi esfacelado pelo gato.
À segunda, o meu falho aproveitamento escolar encolerizou o meu pai, que mandou a caixa de sapatos e os seus oito favos pela janela, lapidados de imediato por uma chuva a rodos.
Não tentei mais, parecia-me a natureza tão frágil! 

14
Gosto da tatuagem da luz nos instrumentos de cobre.


15
Salgueiros. Quando os vejo do rio aceno-lhes em memória daquele dia, quando no rasto de castanha da índia nos quedámos sob os salgueiros, num irreflectido corpo a corpo.
Há anos que não lhes aceno, há décadas que morreu aquele dia.
Só o rio permanece insolúvel.

16
O que é um poço? Desdenhávamos, até o primeiro cair no seu negrume.
Batia o dente quando o tirámos a cavalo num balde de zinco puxado por dois homens.
De lá de baixo, jurava, as cabeças tinham auréola.

17
À noite pareciam-te plátanos e de dia recortaram-se: eucaliptos.
Também a luz que te devasta o rosto o sulca de enganos.

18
Repentinamente, o vento alivia o garrote às acácias.

19
Surpreendido e só, na capela, ouvi primeiro o ecoar invisível e depois, verde, a locusta triunfante de banco para banco.

20
Na ânsia de irisar a sua noite, a ostra cria a lua.

22
Quando vier o granizo vergastar os pomares, partilharei desta vez um aquecido silêncio de castanhas no bolso da gabardina, uma camisola de lã grossa, com moinhos, e uma surpresa que acene e resguarde o riso e os gestos dos mistérios da chuva?
Ou será, again, a brasa que se apaga, o pavio de uma solidão antecipada, tomar
café, fixando nas borras uns olhos pretos tristes, e na vidraça o tear fúnebre da paisagem liquefeita; bater, perdidamente bater no teclado para que não gelem as mãos?

23
Dedaleiras sim, vi-as, cheirei-as, toquei-as, às dezenas na Arrábida, num acam-pamento em que me fartei de namorar.
De resto, tive sorte, nunca me seguiu o brilho estridente dos milhafres.




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