quinta-feira, 23 de agosto de 2012

JOSÉ CABRAL: ESPELHOS QUEBRADOS

tríptico de bacon, enquanto não arranjo a foto
 
Texto que li na abertura da exposição do fotógrafo José Cabral:

Contava o escritor Argentino Jorge Luís Borges, “um dos meus mais insistentes rogos a deus e ao meu anjo da guarda é o de não sonhar com espelhos”. Tenho para mim que ele tinha toda a razão, veja-se o que aconteceu ao Narciso quando se viu pela primeira vez num reflexo nas águas: atoleimou, e apaixonou-se por aquela criatura que ele pensava outrem. E este é um pormenor relevante na equação, Narciso não se sabia diante de uma imagem especular e jurava que estava face a outro. Por isso é natural que se tenha apaixonado, com a sede que dá sempre aos que entregam o coração. O Narciso tem sido lido de forma negativa quando é pelo contrário um mártir do afecto e foi sempre o contrário do narcisismo. Olhar-se nas águas para ele foi uma imprudência.
Não pensem que isto é só cá uma coisa de gregos, lá dos antigos.
Também um conto coreano do século XVIII, fala desta imprudência. Narra a história de um pobre comerciante de potes de barro, o Pak, cuja esposa só tinha um sonho na cabeça, ter um espelho de bronze. E relata o texto quando ela finalmente recebe o objecto desejado: «Pak parecia ter entrado sozinho no quarto mas ela via uma flausina que se punha dengosa perto dele. Quem seria aquela puta? Era a primeira vez que madame Pak se via a si mesmo e não compreendia que aquela mulher ao pé do seu marido era ela.»
Portanto é universal a imprudência em que o José Cabral se meteu quando se fotografou em reflexo, uma tentação que pelos vistos lhe deu forte e feio ao longo dos anos, daí que estejam todas estas fotos devidamente datadas.
Há um segredo que vos quero revelar e que está por trás do delírio fáustico deste projecto.
Este José Cabral, que tantas vezes julga ser o Rezingão da Branca de Neve, é também um apaixonado pela leitura e uma vez leu com susto uma entrevista do Jean-Luc Godard onde este dizia: “o filme é a morte no trabalho”. Como o Zé é um macaco que relaciona tudo com tudo, pôs-se a roer a unha, e a vociferar, “caraças na fotografia é a mesma coisa, e o espelho é o olho do Diabo a rir-se nas minhas fuças – o espelho deixa que eu me veja e em troca disso enche com as rugas do tempo a minha imagem…”. Porque esse é o mistério do tempo e do homem: nós só envelhecemos por fora, por dentro continuamos gaiteiros.
Ora o José, injustiças é com ele, é um ver se te avias para lhes torcer o pipo. E então congeminou um plano para se furtar a este cerco do Diabo. A fotografia de 1987, em que o Cabral e a Pureza se duplicam na imagem, tendo ao canto esquerdo do enquadramento as santas nádegas pintadas por Botero, é que me deu a chave. Nesta foto, que sabiamente introduz no enquadramento um plano-sequência, o que se torna claro é que o fotógrafo é um homem sem rosto. Não só se duplica como é sem rosto, marca de anonimato que o torna invisível. Ora o tempo só actua sobre os singulares, isto é, os que se tornam visíveis porque têm rosto.
Na maior parte destas fotografias o José Cabral é o anti-narciso, é antes o homem sem rosto que espreita pela câmara para ver como é que o Tempo se governa sem ele. Smart.
Está aqui o sentido para o nome da exposição, Espelhos Quebrados.
O pior é que como diz um ditado judeu, quando o homem pensa Deus ri. E o Diabo já se sabe aprendeu tudo com este. E vai e estende uma armadilha ao Zé: dá-lhe o afecto.
E pronto, temos fotos em que ele diante dos amigos baixa a guarda - o palerma baixa a guarda. Sobretudo quando está ao pé do Kok e do Rangel, o José afrouxa a vigilância e baixa a câmara, nalgumas fotos até prescinde delas. Só por causa do afecto, lixou-se: o Diabo mandou logo o tempo sugar-lhe tudo.
E é por isso que o José Cabral aos sessenta anos fez esta exposição com uma temática tão inesperada e nova na paisagem fotográfica moçambicana, porque apesar de ser um veterano renova a liberdade expressiva da fotografia em Moçambique e ao invés de nos dar uma outra exposição em que o seu particular olhar de autor ordene o real dá-nos antes uma lição: a da fotografia humildemente vivida como festa da partilha, na rede de olhares que sustenta o mundo.
E antes que ele me diga, este gajo está-me a dar missa, é com a inteligência desta partilha que vos deixo.  

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