quinta-feira, 27 de setembro de 2012

A ILHA EM PESO/ VIRGILIO PIÑERA

                                                     Virgilio e Fidel: ainda havia ilusões

Andava há dez anos para fazer esta tradução do cubano Virgilio Piñera.
Acabei-a nos intervalos de uma crise de malária, com a asperidade e os picos desse estado semi-febril.

É um dos poemas mais “brutais” do século, escrito por um homem que desafiou todas as convenções.

“No bien tuve la edad exigida para que el pensamiento se traduzca en algo más que soltar la baba y agitar los bracitos, me enteré de tres cosas lo bastante sucias como para no poderme lavar jamás de las mismas. Aprendí que era pobre, que era homosexual y que me gustaba el arte”, explica-se ele.

Considerado o grande dramaturgo cubano do século XX, aderiu à revolução mas a pouco e pouco foi sendo “purificado” das fileiras, reduzido à marginalização, com a sua actividade de editor restringida e a sua sobrevivencia como tradutor sujeita à condição de ter de apresentar um mínimo de seis páginas traduzidas por dia (veja-se a perversidade!).

Enfim, doenças de qualquer estado totalitário.

No fim da sua vida, refere Abilio Estévez: “Se sentía anacrónico, y prueba de ello es que la mayoría de sus proyectos de la última etapa se refieren a hombres convertidos en fantasmas que deambulan por una ciudad de seres vivientes, sin que los demás adviertan su presencia”.

Esta e outras traduções de Piñera sairão proximamente na Abysmo.

 

A ILHA EM PESO 

A maldita circunstância da água por todos os lados
prega-me a esta mesa de café.
Se não pensasse que a água me rodeia como um tumor
teria podido dormir à rédea solta.
Enquanto os rapazes se livravam das suas roupas para nadar
morriam doze pessoas asfixiadas num contentor.
Quando na madrugada, a mendiga roça as águas,
no preciso momento em que se banha um dos seus mamilos,
acostumo-me ao fedor do porto e
resigno-me à mesma mulher que masturba,
noite após noite, o soldado de turno,
escamando-lhe o sonho de ser peixe.
Uma chávena de café não consegue afastar a minha ideia fixa:
noutro tempo eu vivia como nos começos Adão.

O que trouxe a metamorfose?
A eterna miséria que é o acto de recordar.
Se Tu pudesses formar de novo aquelas combinações
devolvendo-me o país sem a água, havia
de bebê-la de um trago para cuspi-la ao céu.
Mas vi a música a subir pelas pernas, a templar as ancas,
vi o saracoteio das negras com copázios de rum equilibrados nas cabeças.
Há que saltar da cama com a firme convicção
de que os dentes, ladinos, te cresceram,
de que o coração te saltará pela boca.

Ainda flutua nos recifes o uniforme do marinheiro afogado.
Há que saltarmos da cama para achar a veia magna
do mar e dessangrá-la.
Pus-me à pesca, cato esponjas, frenético,
esses seres milagrosos que podem desalojar até à última gota de água
e viver secamente.
Esta noite chorei ao ser-me apresentada uma velhota
que viveu cento e oito anos rodeada de água por todos os lados.

Ah, morder, não deixar de morder, de arranhar!
As últimas instruções estão dadas.
O perfume de ananás suspende o voo do pássaro.
Os onze mulatos disputavam o fruto,
os onze mui viris mulatos em riste que finaram à beira da praia.
Dei as últimas instruções:
todos nus, já! Depois despi-me.
 
Cheguei quando davam um copo de aguardente à virgem bárbara
e libavam o chão com rum e os pés pareciam lanças,
justamente quando um corpo na cama podia parecer impúdico,
justamente no momento em que descrer em Deus é um ver se te avias.
Os primeiros acordes e a antiguidade deste mundo:
hieraticamente uma negra e uma branca e o líquido ao saltar.
Para pôr-me triste depilo as axilas.
Só neste país, desabonado de animais selvagens.
Penso nos airosos cavalos dos conquistadores cobrindo as éguas,
penso no desconhecido som do areíto
desaparecido para toda a eternidade,
ah só haverá vantagem se me esforçar e conseguir elucidar
o primeiro contacto carnal neste país, e o primeiro morto.
Como se põem sérios, quando o tímbale abre a dança!
O europeu, sisudo, lia e relia as meditações cartesianas.
O baile e a ilha rodeada de água por todos os lados:
penas de flamingos, espinhas de pargo, ramos
de manjerição, sementes de abacate.
A nova solenidade desta ilha.
País meu, tão jovem, que não te apuras!

Quem pode rir sobre esta pedra funerária onde se sacrificam galos?
A uma voz, sincronizados, os doce nanigos cravam os punhais.
Como a graviola, pode um coração ser trespassado sem ter farejado crime
- no entanto o belo ar afasta-se dos palmares.
Uma mão no três pode atrair a sinistra cor dos caimitos
mais lustrosos que os cromados ao sol
- no entanto o belo ar afasta-se dos palmares.
Fundisses tu os dedos na polpa e voltarias a crer na música.
A minha mãe foi picada por um lacrau durante a gravidez.

Quem há-de rir sobre a pedra funerária onde se decapitam galos?
Quem pode voltar atrás quando as clavas chocam?
Quem desdenha afogar-se na indefinível labareda flamejante?
Ao sangue adolescente bebemo-lo em polidas chícaras.
Agora não passa um tigre, apenas a sua descrição.

As brancas dentaduras perfurando a noite,
e também os famélicos dentes dos chinas esperando o pequeno-almoço,
depois da doutrina cristã.
Todavia pode esta gente salvar-se do céu,
pois, num resumo, ao compasso das aleluias
sacodem as donzelas, destramente, os falos dos homens.
A impetuosa onda invade o extenso salão das genuflexões.
Ninguém pensa em implorar, em agradecer, louvar, ou testemunhar.
A santidade desincha numa gargalhada.
Sejam os caóticos símbolos do amor os primeiros objectos que palpe,
afortunadamente desconhecemos a voluptuosidade e a carícia francesa,
desconhecemos o perfeito gozador e a mulher polvo,
desconhecemos os espelhos estratégicos,
não sabemos levar a sifílis com a repousada elegância de um cisne,
desconhecemos quanto prontamente nos prestaremos
a praticar essas mortais elegâncias.

Os corpos no misterioso chuvisco tropical,
no chuvisco diurno, no chuvisco nocturno, sempre na morrinha,
os corpos abrindo os seus milhões de pálpebras,
os corpos dominados pela luz, desdobram-se
ante o assassinato da pele,
os corpos, que devoram vagalhões de luz e reviram como girassóis de fogo
por cima das aguas estáticas,
os corpos, na água, como carvões murchos que remam até ao mar.

É a confusão, é o terror, é a abundância,
é a virgindade que começa a perder-se.
As mangueiras apodrecidas no leito do rio ofuscam-me a razão,
e escalo à árvore mais alta para cair como um fruto.
Nada poderia deter este corpo destinado aos cascos dos cavalos,
turbadamente colhido entre a poesia e o sol.

Escolto bravamente o coração trespassado
cravo o estilete mais aguçado na nuca dos dormentes.
Eruptivo, o trópico - o seu jacto encharca-me a cabeça
que choca duramente contra a crosta da noite.
A piedade original das areias auríferas
afoga num estampido as éguas espanholas
e a tromba desordena as crinas mais oblíquas.

Posso lá ver com estes olhos inchados.
Quem sabe olhar, apreciar, pôr a nu um corpo?
É a famosa confusão de uma mão no verde,
os estranguladores errando pelos bordos do arco-íris.
Como povoar de galanços o curso solitário do amor?


Demoro-me um pouco em certas palavras tradicionais:
o aguaceiro, a sesta, o canavial, o tabaco,
não mais que o tempo dum aceno, pelo fio da onomatopeia,
sou um titã e passo sem ligar peva ao som da sua música,
passo e digo: a água, o meio-dia, o açúcar, o fumo.


Às tantas misturo-as:
o aguaceiro açoita o lombo dos cavalos
e faz arder a sesta na cauda de um potro,
o canavial ruminando com vagar os cavalos,
os cavalos enovelando-se sigilosamente
na tenebrosa emanação do tabaco,
o último gesto dos Siboneyes enquanto o fumo

se enrosca na forquilha, en passant,
como a carroça da morte,
o último aceno dos Siboneyes, e cavo

cavo esta terra para encontrar os ídolos e contar-me uma história.

Os povos e as suas histórias na boca de todo o povo.

De imediato, enfia-se na boca
de um dos narradores o galeão carregado de ouro,
enquanto o desdentado Cadmo se põe a tocar o bongó.
A velha tristeza de Cadmo e o seu perdido prestígio:
numa ilha tropical os últimos glóbulos vermelhos de um dragão
tingem com imperial dignidade o manto de uma decadência.


As histórias eternas ou a história de um dia, debaixo do sol,
as eternas histórias destas terras parideiras de bufões e periquitos,
as sempiternas ladainhas dos negros que foram
e dos brancos que não foram,
ou ao contrário, como vos pareça melhor,
as eternas histórias brancas, negras, amarelas, roxas, azuis
- cisca toda uma gama cromática por cima da minha cabeça em chamas-,
mais a eterna história do cínico sorriso do europeu
chegado para apertar as tetas da minha mãe.


Por cima disto tudo o plácido flamingo - absolutamente.

Proibido sair, proibido sair!
A vida trapaceada e por cima a nata de rataria.
Não há como sair:
o mais pequeno tubarão recusaria dar boleia a um corpo intacto.
Proibido sair:
descarregam-se as uvas à frente da crioula
que se abanica lânguida numa cadeira de balanço,
e o "proibido sair" termina espantosamente no gemebundo choque púbico.


Cada homem devora fragmentos da sua ilha,
devora os frutos, as pedras e o excremento que nutre,
cada homem morde o sítio deixado pela sua sombra,
e dá dentadas no vazio onde o sol se amodorra,
cada homem, abrindo a boca em cisterna, embalsa a água do mar,
para como o cavalo do barão de Munchausen
descarregá-la pateticamente pelo seu quarto traseiro,
cada homem, no rancoroso trabalho de recortar
as serrilhas da ilha mais bela do mundo,
trata de pôr a andar a besta arraçada de piteiras.


Mas a besta é preguiçosa como um belo macho
e teimosa como uma fêvera primitiva.
Verdade é que a besta atravessa diariamente os quatro momentos caóticos,
os quatro momentos em que se pode contemplá-la
- com a cabeça metida entre as suas patas - escrutando

no horizonte com o seu olho atroz,
os quatro momentos em que se abre o câncer:
madrugada, meio-dia, crepúsculo e noite.


As primeiras gotas de uma chuva áspera golpeiam as suas costas
até que a pele tome a ressonância de duas maracas pulsadas destramente.
Neste momento, como um lençol ou como um pavilhão de tréguas,
poderia despregar-se um agradável mistério,
mas a avalancha de verdes luxuriosos afoga os sons orvalhados,
e a monotonia entorpece o envolvente túnel de folhas.


O rasto luminoso de um sonho mal parido
e começa um carnaval com o canto do galo,
cobre a neblina com a sua fria gabardina o escândalo nos lençóis,
cada palma derrama-se insolente num verde jogo de águas,
perfura, com um triângulo incandescente, o peito

dos primeros aguadores - e a coluna
de água lança os seus vapores à cara do sol
dia após dia remendada pelo galo.

É a hora madrasta.
Os devoradores de neblina estiolam-se
na parte mais baixa do pântano
e um caimão passa-os em revista, docemente, a pau.
É a hora mais madrasta.
Os últimos fogachos de luz em Yara
enterram os cavalos na lama.
Há lá hora mais madrasta.
Cai como um aerólito a espaventosa galinha

e todo mundo toma o seu café.

E que pode o sol diante dum povo tão triste?
Enroscam-se as faenas do dia ao pescoço dos homens
enquanto o leite cai desalmadamente.
Que pode o sol num lugarejo tão triste?
Com um luxo mortal os segadores abrem grandes clareiras no monte,
salta barrocamente a tristíssima iguana em canudos de sangue,
à medida que os segadores, introduzindo cargas de claridade,

se vão ensombrecendo, até se assemelharem
ao matiz de um subterrâneo egípcio.
Quem pode esperar clemência nesta hora?


Confusamente, um povo evade-se da sua própria pele
indo-se deitar com a claridade,
a fulminante droga que pode iniciar um sonho mortal
nos belos olhos de homens e mulheres,
nos imensos e tenebrosos olhos destas gentes
pelos quais a pele entra em não sei em que estranhos ritos.


A pele, a esta hora, estende-se como um recife
e morde a sua própria limitação,
e guincha como uma louca, a pele é uma porca cevada
que freneticamente tapa a sua claridade com pencas de palmitos,
com a folhagem trazida distraidamente pelo vento,
a pele tapa-se furiosamente com periquitos e pitahayas,
absurdamente se tapa com umbrias folhas de tabaco
e com restos de lendas cavernosas,
e quando a pele não é senão uma bola escura,
a espantosa galinha põe um ovo branquíssimo.


Há que tapar! Há que tapar!
Mas a avançada da claridade corrói, invade
perversamente, obliquamente, perpendicularmente,
ergue-se a claridade como uma enorme ventosa que chupa a sombra
enquanto as mãos tendem lentamente para os olhos.


Eis ditos os segredos mais inconfessáveis:
a claridade move as línguas,
a claridade move os braços,
a claridade precipita-se sobre uma fruteira de goiabas,
a claridade transborda sobre os negros e os brancos,
e golpeia-se a si mesma,
vai de um a outro lado convulsivamente,

começa a estalar, a importunar-se, a rachar-se,
inicia aí a claridade o seu alumbramento mais insidioso:
quando a claridade começa a parir claridade.
Enjoo, pelas doze do meio-dia.


Pode um povo, inteiro, morrer de luz como morrer de peste.
Ao meio-dia, povoa-se o monte de redes invisíveis,
e, deitados, os homens lembram folhas à deriva nas águas metálicas.
Quem a esta hora saberia pronunciar o nome mais querido,
ou levantar uma mão para acariciar um seio?
Nesta hora do câncer um estrangeiro chegado de praias remotas
perguntaria inutilmente pelos projectos que temos
ou por quantos homens sucumbem de enfermidades tropicais na ilha.
Ninguém o escutaria: as palmas das mãos voltadas para cima,
os ouvidos obturados pelo tampão da sonolência,
os poros tapados pela cera de um tédio elegante
e pela mortal deglutição das glórias passadas.


Onde encontrar neste céu sem nuvens o trovão
cujo estampido rache, de acima abaixo, o tímpano dormente?
Que concha paleolítica despedaçaria com o seu bronco corno
o tímpano dos adormecidos?
Os homens-conchas, os homens-macacos, os homens-túneis?
Povo meu, tão jovem, e incapaz de ordenar!
Povo meu, divinamente retórico, tão falho para o relato!
Como a luz e a infância ainda não tens um rosto.


De imediato, põe-se em marcha o meio-dia,
põe-se em marcha dentro de si mesmo,
move-se o meio-dia estático, balanceia-se,
o meio-dia iça-se, flatulento,
as suas costuras ameaçam rebentar,
o meio-dia sem cultura, sem gravidade, sem tragédia,
o meio-dia que se urina até acima,
aspergindo no sentido inverso ao da grande mijadela

de Gargantua nas torres de Notre Dame,
e todas essas histórias lidas por um ilhéu que não sabe
o que seja um cosmos decidido.


Mas o meio-dia soluciona-se no crepúsculo, perfilando-se o mundo.
À luz do crepúsculo a folha de yagruma ordena o seu veludo,
a sua cor prateada, do avesso, é o primeiro espelho.
Onde se fixa a besta com o seu olho atroz.
Só neste transe se dilata a pupila, expande-se
até ao extremo da folha.
Então a besta esquadrinha com o seu olho as formas semeadas no seu dorso
e os homens arremessados contra o seu peito.
É uma hora única para observar a realidade nesta terra.


Não uma mulher e um homem frente a frente,
mas sim o contorno de uma mulher e de um homem frente a frente
- entram ingrávidos no amor,
com tal ímpeto que Newton foge envergonhado.


Uma guiné grita fazendo soar a ave-maria:
abrus precatorious, anona myristica, anona palustris.


Ergue-se uma litania vegetal nunca entrevista
defronte aos arcos floridos do amor:
Eugenia aromática, eugenia fragrans, eugenia plicatula.
O paraíso e o inferno estalam e só fica a terra:
Ficus religiosa, ficus nitida, ficus suffocans.


A terra produzindo pelos séculos dos séculos:
Panicum colonum, panicum sanguinale, panicum maximum.
A lembrança duma poesia natural, não codificada, vem-me aos lábios:
Árvore de poeta, árvore do amor, árvore do siso.


Uma poesia exclusivamente da boca, como a saliva:
Flor da febre, flor de cera, flor de Y.


Uma poesia microscópica:
Lágrimas de Job, lágrimas de Júpiter, lágrimas de amor.


Mas a noite fecha-se sobre a poesia e as formas esfumam-se.
Nesta ilha assim que a noite cai o olfacto é o primeiro navio:
todas as aletas de todos os narizes surram o ar
buscando sinais da flor invisível;
a noite põe-se a moer milhares de  pétalas,
a noite enfeixa-se em paralelas e meridianos de cor,
os corpos encontram-se no cheiro,
reconhecem-se nessa fragrância única que a nossa noite sabe provocar;
o cheiro governa o baile, se aperta contra o güiro,
tresanda pela boca dos instrumentos musicais,
ata-se ao pé dos bailadores,
a roda dos presentes devora aquele aroma às pazadas,
abrem-se as portas e os pares somem-se na noite.


A noite é uma manga, é um abacaxi, é um jasmim,
a noite é uma árvore frente a outra árvore, transida, imóvel,
a noite é um insulto perfumado nas trombas da besta;
uma noite esterilizada, uma noite sem almas pesarosas,
sem memória ou história, uma noite antilhana;
uma noite interrompida pelo europeu,
o inevitável personagem de passagem que deixa a sua poia ilustre,
ímpar, quinhentos anos, um suspiro no rodar da noite antilhana,
uma excrescência vencida pelos aromas da noite antilhana.


Não importa que seja uma procissão, uma conga,
um comparsa, um desfile.
A noite invade, rescende, e o fito é um: quem fode sempre alcança.
A fragrância sabe arrancar as máscaras da civilização,
sabe que o homem e a mulher se encontrarão sem falta no bananal.


Musa paradisíaca, ampara os amantes!

Não há que ganhar o céu para o gozar,
dois corpos no bananal valem tanto como o par primordial,
esse odioso casalito que serviu para marcar a separação.
Musa paradisíaca, ampara aos amantes!


Trocamos as potências celestiais pelas presenças terrestres,
- que a terra nos ampare, e ampare o desejo -,
felizmente não levamos o céu na massa do sangue,
só sentimos a sua realidade física
pela comunicação da chuva que golpeia as nossas cabeças.


Debaixo de chuva, pela fímbria cheirosa, por sob tudo o que é uma realidade,
faz-se um povo e desfaz-se deixando os testemunhos:
um velório, uma festarola, uma mão, um crime,
revirados, confundidos, fundidos na ressaca perpétua,
trocando leves saudações, instruindo os seus dentes, martelando os seus rins,
um povo dirige-se para o mar em socalcos de esterco,
sentindo como a água o rodeia por todos os lados,
mais abaixo, mais abaixo, e o mar belisca-lhe as costas;
eis um povo que permanece junto da sua besta na hora de partir,
e uiva no mar, devorando frutas, sacrificando animais,
sempre mais abaixo, até calcular o inteiro peso da sua ilha;
o peso de uma ilha no amor de um povo.      


(1943)


                                                                lezama lima e piñera

1 comentário:

  1. Muito boa a sua tradução do poema. Só para esclarecer: A fotografia com Fidel Castro es uma montagem de photoshop criada para a revista La Habana Elegante em 2009. O mestre Virgilio jamais estive tão perto do ditador. http://www.diariodecuba.com/cultura/1354862422_558.html

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