segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A LOUCURA BRANCA/ JAIME ROCHA

 
Ainda era o Jaime Rocha um escritor a que não se ligava peva quando eu decidi reeditar-lhe A Loucura Branca. Fiz então o prefácio que vai abaixo e que julgava perdido. Aqui fica, doze anos depois, tendo o Rui/o Jaime, entretanto, se alcandorado à atenção que merece:  
A tremenda afasia das sextas. Ter de acabar o posfácio a uma sexta, sem poder gozar a preguiça, as hesitações, a frondosa irresolução dos sábados e domingos, enrodilha à volta do seu âmago perfurado a inteira agonia do corpo. Resolvo tomar um banho de imersão, meio-frio, procurar no choque da temperatura a faísca.
E à primeira submersão da cabeça distrai-me o que ouço: o latido distante de um martelo, um motor não identificável, a vizinha de cima a queixar-se à filha da vizinha de baixo, o chuchar de um bebé no pé de uma boneca de plástico, o matraquear de uns dedos num teclado. A água amplifica os sons, dá-lhes recorte e detalhe – os canos viajam, ubíquos.
E então ocorre-me: a escrita de Jaime Rocha é a de quem anda pelas ruas com a cabeça submersa nos rumores do mundo, nas suas dimensões dúplices, ocultas, cifradas, afastando da sua frente, com gestos de nadador, as cortinas do aparente.
Dizia Goethe: «Não se morre. Apodrece-se em certos lugares, amadurece-se noutros». Se Goethe se referisse à ambivalência das paisagens projectadas num corpo esta sua formulação podia reportar-se àqueles conhecidos e bizarros corpos medievais com rostos errantes, que deixavam de se alojar na cabeça para deambular por outros lugares do corpo, em busca de um lugar onde: homologador.
Vítor, a personagem de A Loucura Branca, está diante da mesma inquietação ulcerada: onde firmar os olhos, no/ do corpo, se a memória – ponte levadiça – não tem um fosso que a salvaguarde da melancolia? Cabe-lhe assim vaguear, sofregamente, no torpor de quem não queria mas foi posto de vigília, mercê de um conjunto de circunstâncias que ilumina as dimensões ocultas, cifradas, do real.
 
Para Aristóteles, a melancolia tinha dois pólos: a loucura e as úlceras. Victor, após o inexplicável suicídio de um amigo fica num estado catapléctico, enfermiço. Vomita. Tumor, anuncia o médico, diante daquela manifesta desobediência do corpo. E onde? Algures, pelo meridiano das úlceras. Esta “erupção” de um “corpo estranho” no corpo que a rotina conformara a um molde amorfo, de uma cartilaginosa repetição formal, fá-lo afrontar pela primeira vez a realidade e reconhecer a sua presença informe, incogniscível. Vítor, durante o repouso a que a doença o obriga, descobre que nunca conheceu verdadeiramente a casa onde habita - «Vítor ia olhando para os objectos com espanto. Nunca tinha dado por um crucifixo no quarto, nem reparara que os reposteiros estavam decorados com formas de árvores de fruto.» -; sequer reconhece a relação espacial entre os objectos que a mobilam, e, pior, que a sutura do seu corpo se desdobra numa sutura óptica, pois à medida que, pela primeira vez, vê as coisas como elas são, espalmadas à sua frente, mais se aproxima de uma fractura ontológica, de uma espécie de terror praesentis que tudo transfigura.
 
Tanto em A Loucura Branca, como no posterior Os Dias de um Excursionista, Jaime Rocha expõe universos de um concretismo diabólico, que fazem resvalar objectos e gestos triviais para a sobrenaturalidade: «Vítor pediu um café, estendeu a mão por cima do balcão, viu os dedos suados que se mexeram uns contra os outros. Nunca antes observara esta posição dos dedos, ora aproximando-se, ora afastando-se, para depois se fecharem e desaparecerem na palma da mão. A chávena do café ficara encostada ao polegar. Num dos dedos tinham nascido cabelos finos e noutro ressaltava uma pequena borbulha arroxeada parecida com um confeite. Pela primeira vez sentia que possuía uma mão, mas não conseguia mexer os dedos. Via-os mexer, sabia que era a sua mão, mas era como se os dedos pertencessem a outro corpo, como se a mão continuasse por um braço artificial que se tivesse colocado atrás de si e se houvesse colado ao seu ombro.»
Ambas as novelas se podem ler como figuras cristalográficas onde – o que é intrínseco às narrativas fantásticas – a potencialidade visionária da mente humana intensifica os recortes patológicos, refractando sombras e mergulhando o mundo das coisas simples em ameaças e suspeitas. Funda-se aqui o drama ou o pasmo das personagens de Jaime Rocha: estão sideradas pelos segredos ou pelo inadmissível que irrompe atrás das portas que tantas e tantas vezes atravessaram, como se debaixo do tapete da realidade houvesse não apenas a sujidade acumulada por descuidadas mulheres-a-dias mas sobretudo o rol de temores e mistérios para que não estávamos aptos, para o qual nunca ficaremos aptos. Diz o narrador, em A Loucura Branca: «Teme-se o que se desconhece, por isso, apesar de ter nascido naquela paisagem o seu temor deveria vir de outros segredos que só agora experimentava».
Em Os Cadernos de Malte Brigge, Rilke dedica meia página à observação do andar de um transeunte a quem domina um estranho tique, que o obriga a dar um saltinho com meia-volta da perna a cada três passadas. Era uma criatura dominada pelo que queria ocultar. Jaime Rocha levanta nas suas novelas uma galeria de personagens cuja característica comum é exactamente a de estarem sempre a inventar cenários para ocultar os seus tiques e obsessões aos olhos dos outros.
O tique de cada um é a sua inconfessável forma de desvio, de resistência ao social, mas o risco de a pouco e pouco o seu carácter se ir sobrepondo ao do seu portador faz sobrevir o pânico da segregação social. Esta contradição tece uma rede de gestos impensados, irracionais, que (n)os conduzem. Apurando a sonda, Jaime Rocha mostra esse manto de inconsciência que recobre os comportamentos e governa o quotidiano: «O barulhos dos pés em cima do oleado enervava-o. Só naquele dia compreendeu a razão porque colocara uns chinelos no começo do corredor, que só serviam para atravessar o oleado»; a consciência dos actos é sempre posterior ao seu acontecer, o que instala uma dimensão oculta por onde se vão disseminando as metástases da “loucura normal”.
Num movimento contrário, Inês, a falsa-cega que a dado momento o salva de ser internado, cede à compulsão de penetrar em casas alheias, não pelo fito de roubar mas à cata de indícios (um extraviado bilhete de cinema, uma conta de supermercado, um bilhete postal) que somados possam recensear os movimentos da verdadeira vida dos locatários – muito diferente da vida que estes relatam, na sua desbordante fantasia. Esta “loucura”, presente nos mais irrelevantes sinais, é delatada por Jaime Rocha com o sentido de humor de um Tati, um humor em surdina, subtil, que realça na ordem do trivial a sua enlouquecida natureza cómica: «Quando o médico saiu é que Victor verificou que era coxo. Ninguém mais dera por isso. A todos pareceu que ele saltava por cima do gato.»; «Vítor ouviu a rapariga com atenção, tinha uns grandes olhos castanhos, um sorriso cândido, com um dente molar dourado que se destacava do resto da dentadura. Reparou que ela ostentava um broche com o feitio de um pão caseiro, que devia ser o emblema da editora».
 
Outro aspecto interessante nos livros de Jaime Rocha é que os comportamentos humanos, apesar de descritos com uma minúcia estonteante, não derivam propriamente de uma mecânica causal -  «A cama já não existe, havia-se partido numa manhã de domingo em que Vítor se sentira mal e vomitara. Adelaide lembra-se desse dia porque um dos filhos tinha atirado um vaso ao chão e uns minutos depois a vizinha tocara à porta a pedir açucar»; padecem antes de uma propensão para se metamorfosearem, adoptando a plasticidade que caracteriza o universo exterior. Tanto A Loucura Branca como Os Dias de Um Excursionista estão impregnados pela ideia de transformação.
Começa pela súbita irrealidade do corpo, que se torna estranho (cf. o segundo excerto citado acima) e acaba pela fusão de objectos exteriores no corpo: um misterioso triângulo de vidro que se funde no corpo de Vítor e lhe provoca uma mutação do seu aparelho perceptivo. É fácil aludirmos a Kafka quando lemos A Loucura Branca mas parece-me mais produtivo remontar a Dante, autor para quem o homem necessitava de uma metamorfose para adquirir noutro mundo uma forma definitiva e eterna.
Para Dante o homem era larva neste mundo, crisálida no outro (sobretudo no Purgatório) e ser completo ou imago no Paraíso. O Inferno correspondia à maldição de estarmos confinados numa identidade, numa memória, reféns de um corpo perecedouro e maldito.
De forma semelhante, em Jaime Rocha o Inferno não está nos outros, como garantia Sartre, mas no pequeno, compulsivo e irrefragável tique que prende cada um à imobilidade e resiste ao fluente devir outro. Porque – e sublinha-se aqui o paradoxo infernal – se por um lado o nosso tique homologa uma forma de resistência privada à alienação no colectivo, por outro sinaliza a nossa impotência para superar as nossas propensões identitárias, o estado larvar.
Só a loucura, electrizada pelo seu naipe de significantes flutuantes, pode então operar a passagem para outra modalidade de ser. Repita-se Goethe: «Não se morre. Apodrece-se em certos lugares, amadurece-se noutros». O ser que evanesce num lugar não encalha no Nada. O Nada deixa de ser negativo para sinalizar unicamente um intervalo entre dois traços, o momento em que uma sincronia entre a realidade exterior e a realidade interior articula uma nova possibilidade, um novo lugar para o despontar do rosto errante. É branca essa loucura porque, nesse instante em que o novo se entroniza, abolindo todas as anteriores hierarquias e dispositivos da percepção, a sua possibilidade abarca o espectro inteiro.
Vítor, que ao princípio vê um caranguejo agonizante na praia, escolhe no fim penetrar no mar, como quem despe uma carapaça exterior (esse esqueleto de crisálida) para se fundir numa totalidade que o engolfa. Ali, só uma variável o separa do crustáceo.
E se isso é um bem ou um mal esta água transparente que (na banheira) me cobre e se infiltra nos furos do meu corpo, desatando as forças, nada me diz. Mas sinto - ironia – que o corpo se apega ainda à caução do medo, às rochas. Levanto-me, sento-me à mesa, retomo o posfácio: «a escrita de Jaime Rocha é a de quem anda pelas ruas com a cabeça submersa nos rumores do mundo, nas suas dimensões dúplices, ocultas, cifradas, afastando da sua frente, com gestos de nadador, as cortinas da aparência. É a escrita de quem dá conta de que os objectos nos lêem, etc... »
 
 
 

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