domingo, 2 de dezembro de 2012

A NOITE É-LHE PROPÍCIA

pierre soulages
 
«O físico Szilard anuncia um dia ao seu amigo Hans Bethe que havia decidido ter um diário.
- Eu não tenho a intenção de o publicar; vou simplesmente catalogar os factos para que Deus seja informado sobre eles.
- Tu não crês que Deus conhece os factos? – pergunta-lhe Bethe.
- Sim – diz Szilard. Ele conhece os factos, mas ele não conhece esta versão dos factos.»
É Pierre Jacob quem conta, no seu livro L’Empirisme Logique. E é notável este diálogo porque nos dá uma dimensão de Deus a quem se concede respeito e fidelidade mas a quem o homem enriquece acrescentando-lhe algo, uma pequena tecla para que ele possa pensar, ouvir e ver mais; sendo essa a tarefa do homem: ser um dispositivo complementar.
Esta anedota nem nega Deus nem o coloca numa esfera transcendente, intangível, e absconsa.
O olhar de Deus enriquece-se no encontro com o homem.
E isto lembra-me uma das exigências apontadas pelo pedagogo López Quintás para que se efectue um encontro.
Um encontro, diz aquele, não é uma mera proximidade, um encontro exige a compartilha de valores elevados:
«Vejam só, quando você e eu nos dirigimos rumo a algo valioso, unimo-nos entre nós. Para unir-se, o mais importante é fazer o bem em comum, compartilhar algo. Dizia Saint-Exupéry, o autor d’O Pequeno Príncipe, numa outra obra, Terra dos Homens: amar-se não é olhar um para o outro; é olhar juntos na mesma direcção. E eu comento, amar não é tanto um olhar para o outro – pelo prazer de olhar a pessoa amada – mas sim consagrar-se a algo valioso. Quando uma pessoa e outra realizam em comum algo valioso, isto é o que cimenta a união». 
O que vale para o amor, julgo similar ao encontro com Deus: nesse encaixe, Deus e o homem olham juntos em que direcção, compartilham o quê? Qual é o terceiro da relação?
Ψ
Quatro poemas de Jose Agustin Goytisolo, que traduzi em tempos:

A NOITE É-LHE PROPÍCIA

Foi tudo muito simples:
aconteceu que as mãos
                                     que ela amava
tomaram de surpresa
a sua pele e os seus cabelos;
                                     que a língua
descobriu o seu deleite.
Ah, deter o tempo!
                               Ainda que a história      
vá no seu início
e ela saiba que a noite
                                    lhe é propícia
teme que com a alba
venha uma sede
                          igual à de sempre.
Agora, o amor invade-a
uma vez mais. Ó tu,
                                 que bebes!
Apieda-te dela
vê como tem seca a garganta
                                   nem falar pode.
 E escuta a sua condoída
respiração; a agonia
                              de um êxtase
e o rogo: não te vás
não te vás. Façamos pois
                              uma saúde!
 
 
 
Quando a água debaixo do chuveiro
a resgatou ao aturdimento
de olhos fechados crio ver
milhares de gotas apressadas
a salpicar-lhe o manto da infância
como se fosse uma tempestade
de algum longínquo veraneio.
Na estância que os conduz
pelos caminhos da noite
pede “seca-me os cabelos”
como lhe faziam em menina.
Depois vai à janela e encara
de frente o céu assombrado:
estas horas passarão num ápice
chegará o dia e o adeus
e só ficará a ausência.
O frio roça a sua pele húmida.
 
 

O SONO VENCEU-A POR UNS MINUTOS

 
Quem seria por Deus quem era
aquele homem meio abstraído
que olhava a lua cúmplice
o copo sempre atestado
um cigarro caído entre os lábios
e nu como o demónio?
O sono venceu-a por uns minutos
mas ele não se moveu. Observa
o amante, o conhecido de poucas horas,
se bem que ele sim parecia sabê-la de cor
apesar de se terem acabado de encontrar.
Olha o relógio. Pensa na sua casa:
na quietude que a mantém
enquanto ela... patetices!
Com assombro constata agora
que não sente pena ou sobressalto.
Levanta-se para beber:
ele vai ouvi-la e virá ao seu lado
para voltar a estremecê-la.
 

NÃO HÁ RETORNO

 Já terminou o domínio
                                da noite
e um ar macilento
                            surde
detrás dos cristais.
                               Vestiu-se:
recolhidas as suas coisas
                               enrola agora
o último cigarro.
                              Depois, em pontas
dirige-se para a porta:
                                não se vira
ela dormita e contemplá-la
                                           dói.
O seu corpo de luz é
                              desfechado na luz,
e ele esgueira-se tenso:
                                não há retorno,
adivinha que a morte
                                 lhe é propícia,
que há de fundir-se na sombra
                                 mais profunda
e vária. E que nada lhe aliviará
                                a derrota.
 
Ψ
 
À PORTA DOS CORREIOS
À porta dos correios recebi o telegrama de Cupido.
O que senti assim que a vi com uma ninhada de filhos
a arrematar os bordos da saia e que a consciência
me bolçou: pertence sempre a outro, a mulher da nossa vida.
Limitámo-nos a trocar aqueles beijos molhados
que o Kafka enviava por carta a Milena,
carícias inexistentes para quem desconhece
ser o desejo uma locomotiva
adejando em piloto automático.
 
 
 
 
 

Sem comentários:

Enviar um comentário