segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

FÁBULA DA VELA E DO GUARDA-CHUVA

                                                              Rubens. Queres bacela?

A minha mulher abana-me o tronco e caio maduro da árvore da sesta.
- António, acorda, acorda… Fundiram-se as lâmpadas da cozinha. Como é que cozinho?
Miro-a do fundo mais gelatinoso dos meus olhos e vejo o seu típico ar de desconcerto, quando um camião lhe atropela o carrinho das compras.
- Manda comprar velas à tasca do beco… - sugiro estremunhado e viro-me para o outro lado.
- Já as mandei embora… elas (refere-se às empregadas) também têm Natal… - contrapõe.
Olho pela janela, escurece. Será que o tipo da tasca também tem Natal? Começo a ver a minha açorda de camarão (o meu pedido para acompanhar o bacalhau) por um canudo. Resolvo ir então ao mercado Mandela, na outra ponta do quarteirão, sondar os vendedores ambulantes.
Desço à rua no elevador ronceiro e nimbado por uma luz bruxuleante, que tosse, tosse.
Na rua caiu a noite, de sopetão. Tenho de habituar os olhos ao breu.
Dobro a esquina e vou de vendedor em vendedor, tens velas? Nada, niente. Estaco na banca de um vendedor de lanternas (maldigo-me, por que raio não trouxe dinheiro suficiente dinheiro comigo, e censuro-me, idiota) e de material eléctrico. Pelo sim pelo não, arranjo coragem para perguntar:
- E para o vovô, tens velas?
- Eu não, lá… - e faz com a mão o gesto de quem dobra a esquina sul do mercado – espera… vem comigo…
Conduz-me naquele labirinto descendente de penumbras e de mercadorias foscas e damos a curva, até que me aponta as costas de um vendedor:
- Ele tem velas…
Agradeço-lhe.
-Tem velas?
- Tem… - responde-me. E indica-mas com um dedo.
Um saco com seis velas compridas, espiroladas sobre si.
- Quanto é?
- Dez meticais cada.
- Ah… - replico -, como são seis, é cinquenta, a sexta é bacela*…
- Não posso, boss…
- Não podes? Jura…
- Juro pela minha mãe…
- Pela tua mãe… Mas tu és capaz de jurar em vão! – provoco.
- Juro por Deus! – arremata ele.
- Deus? Deus é um bocado aldrabão.
- Deus não mente, boss.
- Não mente? Então se ele vai ao teu ouvido e diz, Gosto muito de ti, e depois vai ao ouvido do presidente e diz, Gosto muito de ti… A um de vocês está a mentir…
- Deus não mente, boss! – ele não cede.
- Mente, vai aos ouvidos dos pobres e diz-lhes, Tu és Job e estás na provação mas eu sou o teu Deus… e mente… sabes porquê?
- Porquê? – pergunta o desconcertado vendedor de velas.
- Porque tu não te chamas Job. Como te chamas tu?
- Manhiça…
- Vês, para que quer Deus convencer-te que és Job?
- Job já tenho, boss… - responde-me ele, num sorriso matreiro.
- Tens razão, ficamos nos cinquenta?
- Nos sessenta, porque já vi que o boss é mais justo que Deus…
Fico sem resposta, pago-lhe as velas, e palmilho a subida, entre sombras, a cismar como Deus é o tipo mais velhaco que conheço, um velhaco cheio de humor e com um enorme guarda-chuva.

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