sexta-feira, 30 de novembro de 2012

CRÓNICA DA RUA DO BAGAMOIO, EX-RUA ARAÚJO

CRÓNICA DA RUA DO BAGAMOIO, EX-RUA ARAÚJO
 
A preta perneta tinha uma boceta
mais rapace que o canal de Madagáscar
e era a imodéstia em pessoa, pintava
o carioca, uma cabra pespeneta
 
ou pior, jurava, uma pseudo-freira
mais inflamável que um fogareiro.
Bastava o mais pequeno cometa
acercar-se do seu lascivo salão
 
de varandas serpenteantes, a despeito
do matinal esconjuro da missa
e do péssimo jeito com que a meio
a imagem da madre superior a desligava
 
do furor da piça. Fora-lhe a vida
conduzida por Deus, lá em Manica,
até que uma mina fabricada por ateus
lhe roubou a perna. Deu então a preta
 
perneta um biqueiro na fé e nos Maristas
para abraçar a culpa eterna.
Felizmente que Deus, amenizava o carioca,
não liga a cadelas perfeccionistas.   
 
 

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O VENTO É O MEU SEGURO DE VIDA

                                                                         titos pelembe
"Eu sou inteligente porque venho de África e não porque sou africano "
Bento Carlos Mukesswane
Apanhei esta citação no site da Muvarte e há horas que olho para ela sem saber como a traduzir. Puro embasbaque.
Num português cá à maneira seria “Eu sou inteligente porque venho de África e não porque seja africano”, mas não é isso que me chateia. Aliás, não me chateia, apenas me intriga.
Que quer dizer esta coisa ?
Faz-me lembrar uma conversa que tive uma vez com uma amigo de quem gosto muito mas que tem um tracinho de racista e que estava excitado naquele dia porque, dizia, os gajos que estudam o ADN descobriram (o que era falso, mas ele ainda não sabia) que a raça negra tem em média menos cinco por cento do QI. E então saiu-me: ah, mas isso parece-me muito pouco, estou farto de conhecer pessoas com mais vinte e cinco, trinta por cento, de inteligência que eu… tu não?  
O que é que a inteligência tem a ver com as raças ou os continentes?
Existem naturalmente sistemas sociais mais favoráveis a que ela se desenvolva espontaneamente do que outros, mas sempre haverá quem (ir)rompa, em toda a parte.
Merda para as raças e os sentimentos nacionais.


Entro hoje oficialmente de férias. Ainda tenho de dar notas e suportarei ainda uma por outra reunião mas o que interessa é que psicologicamente fecho hoje a cortina.
Finalmente, dois meses a ler e a escrever apenas o que Deus (que é ateu) manda.
E a traduzir a Luisa Futoranski, uma argentina que tem poemas de truz!
E a dar de beber às Raposas, que andam mancas.
E a arear as orelhas nos ditos das minhas filhas - com elas é sempre o Dia Mundial da Serpentina.
E a preparar coisinhas que nem digo, nuvens de aveludar o olho.
E o melhor de tudo: dois meses em que volto a sentir que sou mortal, que posso morrer amanhã, sem planos analíticos  a cumprir, apesar da minha preclara fragilidade.
Primeira tarefa escolhida: reler o Liberalismo – antigo e moderno, do Merquior. Today.
Tomorrow, fazer notas à margem dos ensaios sobre literatura de Orhan Pamuk; no intervalo proceder a escavações nas tripas dos caranguejos que já mandei comprar.
Isto é que é uma feliz vida de pobre desabonado de reforma, da simples ideia.
E não posso esquecer-me de explicar à minha filha adolescente que nunca se deve deixar convencer de que tenha de negociar com a “pureza” de alguma coisa.

“mar bom de dólar” : há expressões do catano.

Conheci uma pessoa estimável que me disse odiar a sensação do vento no cabelo, de sentir que à sua volta se emaranha o ar. Comigo é ao contrário, não quero outra coisa. O vento é um dos meus fascínios, uma das poucas coisas que me deixa absolutamente seguro.


MANUAL PARA INCENDIÁRIOS


Apresentei ontem o último livro de crónicas de Luis Carlos Patraquim, no Instituto Camões de Maputo. Aqui segue o texto:

Eu não sei se já vos disse que os gatos são os maiores sonhadores do planeta. A informação chega-nos dos neuro-cientistas que estudam o sonho e onde entra a ciência há que calar e estender a esteira. Os números são retumbantes: o homem sonha cerca de 90 minutos por noite e o gato 180 minutos.
O Gato de Cheshire, da Alice, aquele que se põe invisível quando quer, sonha o dobro; primeiro, nunca corre o risco de ser interrompido, segundo, sendo invisível escrutina todo o inaparente, podendo estar atento sem interrupções à irrelevância substantiva que dá cerzidura ao tecido do mundo. Daí que desperte outros vincos na memória, mais do que nosotros, comuns mortais, e destituídos de lente.
Há dois deuses da crónica: o Plínio e o Gato de Cheshire.
No Plínio podemos encontrar as plantas que nascem de uma lágrima, um centauro – trazido do Egipto – conservado no mel, os andróginos de Nasamona que alternam os sexos quando se acasalam, o poeta Pompônia que nunca arrotava, e até a refutação da crença de que um cometa surgido entre as partes pudendas de uma constelação possa anunciar uma época de relaxamento dos costumes.
Os cronistas são compiladores obsessivos que nunca se esquecem de nada, do mais minúsculo pormenor, e que fazem das variações do ínfimo modos compulsórios para ler o mundo e para o julgar até, mas com a bonomia dos sages, cientes da inutilidade do seu próprio exercício.
É o que lhes dá a vantagem sobre os ideólogos: em surdina, eles não querem denunciar nada e fazem do relato da sua exasperante inabilidade uma deriva no mundo. E então, para lermos a sua época e as suas derivações temos de ir aos cronistas, enquanto nos ideólogos acabaremos por ler unicamente o seu próprio ultraje, a sua indisposição para com a época que lhes coube.
O Patraquim, como quem não quer a coisa, diz isto melhor que ninguém ao citar o japonês Tanijazi e o seu Elogio da Sombra, onde lemos: «nós, os Orientais criamos beleza ao fazermos nascer sombras em locais por si mesmo insignificantes». Esta é uma poética para cronistas.
Cada sombra recortada é uma categoria nova através da qual podemos reler o real, uma nova incisão que abre uma janela onde só se via uma parede. Por exemplo, e este seria um típico tema para cronista, falar de como «uma ducha escocesa» se transformou num pífio e lacónico «duche», assim mesmo, um maricon, não é apenas falar de uma empobrecedora redução semântica como também mostrar a deriva dos signos na História e o ponto em que estamos nessa consciência histórica.
Isto é importantíssimo, pois ao apontar os holofotes às coisas inaparentes, invisíveis, até que nelas se apresente «a pungente melancolia das coisas» (entrevendo assim o avesso da memória, o outro lado da história), tornamos evidentes como são inumeráveis as narrativas do mundo (dizia o Barthes), escondendo-se aqui a pólvora invisível com que os cronistas desmantelam a tentação dos regimes quanto a estabelecerem uma narrativa única.
As duas antologias de crónicas até agora publicadas, Ímpia Scripta  e esta, Manual para Incendiários, demonstram que o Luís Carlos Patraquim, para além de ser – e não é matéria de opinião, mas de facto – um dos grandes poetas africanos deste período, ainda que obscuro, hermético e tralalá, é também um dos mais argutos cronistas moçambicanos deste momento. Desculpem, não falo de um cronista de ímpetos, mas irregular, falo de constância, de débito regular, dum magma com uma determinada densidade de incandescência, da capacidade para manter a mira crítica sem esquecer as salvas do afecto; do saber que aqui porfia mesmo para falar somente de maçãs ou de risos de corpos pubescendo ainda; da imensa reinvenção narrativa, posto muitas destas crónicas terem como ponto de partida a míngua de tema. E falo também do equilíbrio destas crónicas, porque as comunidades, quer as sociais ou a dos leitores, não se organizam tendo por motivo exclusivo a violência, o gesto heroico.
O tempo dirá o lugar destas crónicas, na tapeçaria da literatura moçambicana; julgo que lhes acrescentarão um brilho que a proximidade não deixa ver. E aí se dará conta da sua entronização na história deste país, não porque o Patraquim pertença a qualquer Liga dos Amigos do Bantu, gaveta onde o gostariam de o colocar, mas por insofismável direito, não só de nascença, vivência e espontânea crioulagem da linguagem, mas sobretudo por uma consequente e contínua defesa da presença dos motivos, caracteres, cultura e linguajares moçambicanos no baixo-relevo da história contemporânea, gesto em que é quase único. Poucos fazem tanto pela dignidade de uma moçambicanidade, como ele que não ostenta, nem tem, coitadito, nenhum cargo.
E fá-lo com humor, de manselinho modo, como ele o diz, inoculando o leve onde se institui o grave. Por exemplo, logo na crónica que abre o livro, que se elabora a partir da sua própria busca, pois nem tema nem título tem o confesso sacrista, revela-se um humor apurado pelo sombreado de nos reconhecermos frágeis. Estive quinze minutos encantado com uma frase deliciosa, em que só a escolha do verbo vale a crónica. Diz a frase: Gangrena-me a dúvida de não saber se ainda há epopeia. A gravidade do verbo gangrenar é aqui, pelo hiperbólico, um claro sinal de que o poeta se riu às gargalhadas quando escreveu essa frase, conquanto o assunto seja reconhecidamente sério e a dúvida possa ser excruciante.
Um cronista aprende a ser vários e a tartamudear as nuances. Se sabe rir, como o Patraquim pelas mais ínfimas razões inaparentes, apesar das inúmeras declinações da temática do fim, nunca cairá no cinismo, nunca se renderá à lamúria,
Podia dar outro exemplo de humor com a deliciosa conversa entre o cronista e a pomba Efigénia que incide nos maltratos sobre a natureza, mesmo que debaixo do guarda-chuva do cinema, ou falar-vos da subtileza com que o Patraquim se debruça sobre os males ecológicos na crónica Andam a Tramar o Sr. Hemingway; ou da graça com que o cronista porfia nos quatro elementos, ou como tende a transformar qualquer cavalgada infernal numa corrida com os Irmãos Marx, com o Harpo a tocar harpa de costas sobre o dorso de um alazão branco que se precipita para o abismo e o Groucho a pôr-se em pontas sobre a sela porque viu viúva rica no horizonte.
Já não quero falar da magnitude da língua, do swing com que esta dança, nem do ritmo das frases, que me faz lembrar as crónicas duma amiga comum e grande escritora, a Maria Velho da Costa.
Termino falando da urgência, da urgência da ética que se fala numa crónica: «A cabeça lateja. Deve avançar-se para a combinatória de caracteres, frases, ideias – se as houver – só quando as veias ameaçam rebentar e o aneurisma está iminente. Então as palavras funcionam como sanguessugas, campânulas de vídeo onde o olhar bate ao leve com a mão e um brilho viscoso tinge a minúscula paisagem.» É isso que falta a muita gente que escreve, o carácter da urgência, e o saber de que apenas quando as veias ameaçam rebentar estamos aptos para não mentir. Esta é uma dimensão que não se ensina, ou se experimenta ou não – calibrar o mais refinado sentido lúdico com a verdade da escrita é uma das lições não-declaradas deste Manual para Incendiários.
Mas isto só acontece quando a lucidez não nos desengana a consciência de que estamos lixados e ainda assim sucumbimos alegremente «ao destino de tanto amar».
Alto, o Gato de Cheshire, está-me a contar um segredo. Esperem. Como é que é? Ah, diz ele que o Patraquim neste livro se entregou irresponsavelmente ao «alfabeto dos sonhos» e que face a isso só há uma forma de reincidirmos no erro de o ler, tens a certeza de que é reincidir no erro?, hum, o Gato de Cheshire diz que ler o Patraquim é inegavelmente reincidir num erro necessário, e portanto o método que aconselha é: chegar à sala, apagar a televisão, sentarmo-nos no cadeirão, deitar a mão ao cálice de brandy na mesinha ao lado e fazer rodar o líquido antes de o emborcar de um trago, abrir então o livro e, antes de nos embrenharmos na primeira letra, deixar que as pálpebras se fechem. Claquete. Sonho REM.
Esgotem o livro se faz favor.

 

 

   

  

domingo, 11 de novembro de 2012

MEMO DE 12 DE NOVEMBRO

                                                                           kokoschka


Dois poemas gregos, de Pandelis Prevelakis (1909-1986), perseguiram-me toda a manhã até que os verti para português, cotejando as traduções francesa e espanhola:

O CREPÚSCULO
Penetrou o crepúsculo na quinta
como um rubro leão.
O seu fulgor espalmou os espelhos,
e eu senti a tíbia planta de sua pata
sobre os meus pés nus.
Inclinei-me e, na minha mesa
abençoada pelo labor do dia,
vi que o sol me lambia os pés
com a sua linha de fogo.

A AMEAÇA
Pôs-se um falcão a planar sobre nós.
As garupas dos cavalos brilham,
a jovem mulher alçou o seu filho
e gritou: Eternidade!
Insiste, o falcão paira sobre nós.
Grito, chegou a minha vez: Eternidade, eternidade!
O que os horizontes me espantam!


Terminei hoje um artigo que me foi encomendado pelo Teatro de S. João sobre o romance Casas Pardas, de Maria Velho da Costa, e a sua adaptação para teatro por Luísa Costa Gomes. Não tenho a certeza de ter desempenhado a coisa como ambas as autoras mereciam, mas, relendo Casas Pardas fiquei com a certeza que este é um romance que só se lê na vertical e não para espairecer, ou seja, que quem não for capaz de resgatar em si a atenção que está ao fundo do canto escuro, desiste. É um romance extraordinário e muito exigente e que me deu a certeza de que a maior parte dos romances que hoje são escritos não passam do que dantes se chamavam as novelizações – pobres derivados do cinema.

De cada vez que encontrava alguém e dizia, epá, vinha a pensar em ti, a pessoa evolava-se à sua frente.
 
Philippe Sollers é um dos mais prolixos e instigantes autores franceses e entre os livros dele que prefiro estão Casanova L’Admirable, a verdadeira cartografia da insurreição que é L’Écriture et L’experience des Limites, e o seu longo diálogo sobre Dante, La Divine Comédie.
Hoje reabri o livro sobre Casanova e voltei a verificar que nunca lhe falta o desassombro, a capacidade para pensar sempre de forma politicamente incorrecta, como neste delicioso excerto: «Conhece-se o disco: se Casanova se interessa de tal forma pelas mulheres, é porque ele era, sem se confessar homossexual. De resto, essas histórias de mulheres são duvidosas. Era preciso ter a versão delas. De todas as maneiras, que procura um homem nas suas múltiplas aventuras femininas senão a imagem única da sua mãe? Don Juan, não era, no fundo, homossexual e impotente?
Fala-se muito, nomeadamente, de homofobia, mas jamais de heterofobia: é estranho.»

Aí está uma coisa em que também eu acredito piamente: Pasternak estava convencido de que só o esquecimento da sua persona ou imagem social podia abrir na sua alma o silêncio necessário para que se resgate nela a verdadeira energia da palavra.

Ouço na televisão, Temer a Deus é um sinal de sabedoria, e compreendo pela primeira vez que este temor foi a forma hiperbólica como os hebreus traduziram a necessidade de cada homem enveredar pela phrónesis grega - a moderação ou o sentimento da proporcionalidade que dimana da prudência. É apenas uma advertência contra a hybris, a desmesura, advertência aliás comum a toda a bacia mediterrânica.

 Fiquei sem net na sexta à noite, o que me impede de ler a Bola de viés, pela manhã, para me inteirar sobre os resultados do campeonato de futebol. Cada vez tenho mais dificuldade de seguir um jogo inteiro de futebol, mas gosto deste ritual matinal, onde não gasto mais do que cinco minutos, mas que me é caro. Rotinas.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

A DIMENSÃO DO DESEJO/ VIRGÍLIO DE LEMOS


Teve ontem lugar no Instituto Camões, em Maputo, o lançamento do livro A Dimensão do Desejo, de Virgílio de Lemos. O livro foi apresentado pela professora Rita Chaves e eu li o texto que segue em baixo, sobre a ligação do poeta a Reinaldo Ferreira, a quem o livro é consagrado.
Em cima, a capa da antologia que eu organizei em 2010:


Como o atestam todas as dedicatórias com que o Virgílio polvilhou os poemas e que às vezes se multiplicam até roçarem à insânia, pois há poemas com doze dedicatórias, o Virgílio, que toda a vida foi errante, é, por lastro e compensação, um homem de fidelidades.
A maior de toda consagra-se neste livro, dedicado no essencial a Reinaldo Ferreira. Ora. O que à primeira vista é surpreendente é que não podiam existir poetas mais opostos. Um é fogo preso e o outro fogo-de-artifício, um escreve como se não tivesse havido Rimbaud e o outro foi irrigado pelo surrealismo e plana pela liberdade do jazz, um prefere uma estética do acabamento e outro professa-se num inacabamento perpétuo.
Reinaldo Ferreira é um pós-presencista muito influenciado pelo Pessoa ortónimo e que na verdade tem uma recepção minimizada em Portugal porque o século XX português na poesia está cheio como um ovo e só na sua geração conta com Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner, António Ramos Rosa, Raul de Carvalho, Edmundo de Bettencourt, António Maria Lisboa e Mário Cesariny. Depois, o caso de ter sido Régio quem mais exultou com a publicação dos poemas reunidos de Reinaldo Ferreira não ajudou – a melhor poesia dos anos 50 fez-se contra o que o Régio representava, esteticamente falando. Quer isto dizer que o Reinaldo Ferreira teve pouco espaço para a sua afirmação plena em Portugal.
Evidentemente que o mesmo não se pode dizer do seu lugar em Moçambique, onde nessa época não existia o mesmo número de tubarões-baleia por quilómetro quadrado, nem a poesia estava no mesmo ponto.
Quer isto dizer que o Reinaldo não era um grande poeta? Não. Mas que foi uma expressão algo deslocada da poesia que então se impunha, um fantasma que passava em fundo.
Para ajudar a compreender isto melhor e o enigma da atracção do Virgílio pelo Reinaldo, talvez seja bom trazer aqui uma distinção que o Octavio Paz fazia sobre as linhagens dos poetas. Para este grande poeta e ensaísta mexicano há os poetas que se servem das palavras para expressar ou desentranhar os seus conflitos e visões, para quem a linguagem é um instrumento para criar objectos verbais que são em si mesmo declarações espirituais ou psicológicas. Depois há os outros poetas, no outro extremo, para quem a linguagem em si mesmo é já um conflito ou um problema: isto é, este tipo de poetas não se serve das palabras e confía que estas são tão reais ou irreais como as árvores, as casas, os aviões e as paixões. A atitude destes poetas é mais radical e mais crítica e criadora, por vários motivos:  primeiro porque ao enfrentar-se com a linguagem enfrenta os fundamentos mesmos do mundo, e crê que para dizer o mundo há que inventar outra vez a linguagem, em segundo lugar constrói com a poesía uma relação, não faz do poema um objecto, não o instrumentaliza.
O Reinaldo Ferreira pertence à primeira linhagem de poetas. Por isso quando se lê um poema como este:
 
Quero um cavalo de várias cores,
Quero-o depressa que vou partir.
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir.
 
Quero uma sela feita de restos
Dalguma nuvem que ande no céu.
Quero-a evasiva - nimbos e cerros -
Sobre os valados, sobre os aterros,
Que o mundo é meu.
 
Quero que as rédeas façam prodígios:
Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa às camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele ponto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.
 
Deixem que eu parta, agora, já,
Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Mas como posso partir sozinho
Sem um cavalo de várias cores?
 
Quando se lê um poema como este vê-se que o seu tema é prévio ao acontecer e à experiência do poema. Reinaldo Ferreira sabe sempre do que fala, a sua luta é contra a expressão, no garimpo de encontrar as melhores palavras para designar o que quer dizer. É de comum uma poesia mais formal e com modelo.
Ora os poetas da outra vertente estão mais na esteira de René Char que dizia, pobre do poeta a quem o poema não ensinou algo. Isto é, pobre do poeta que sabe o que diz! A pulsão destes poetas é mais plástica, menos referencial, mais despersonalizada e magmática, pois não quero usar aqui a palavra livre, e dá-se nesta poesia a travessia que vai do lirismo pessoal ao lirismo da persona.
O Virgílio dos poemas que prefiro é mais desta linhagem e acredito que muitas vezes, para além do seu gosto pela música das palavras (e por uma certa crioulagem dos sons e da sintaxe), não sabia onde as palavras o conduziam.
Então o que atraía para Reinaldo?
Julgo que uma proposição de Baudelaire sobre a arte nos ajudará a pensar nisso. Dizia Baudelaire que uma obra de arte deve ter uma parte de imortalidade e outra de audácia, de intimidade com o novo. Queria ele dizer que uma obra de arte deve ser o espelho de uma herança vivificada pela novidade, ou ter o rigor formal dos melhores exemplos antigos mas ser ao mesmo tempo infiltrada pela pulsão e pela sensibilidade do presente. 
Este rigor, o mesmo rigor que na verdade Virgílio nunca almejou ou alcançou encontrou-o Virgílio em Reinaldo Ferreira. Não esqueçamos que o Virgílio é um poeta que vive menos de uma afirmação egóica que de endereços, de polaridades, permanentemente em trânsito para o outro e o convívio da pluralidade. Por isso se dedicou aos heterónimos. Ora, a minha hipótese é que o Virgílio, que teve toda a vida uma inclinação para a despersonalização, via Reinaldo como uma sombra sua, a parte escultórica da eternidade de que falava Baudelaire, enquanto a si mesmo se sentia a outra metade do novo, a heterodoxia do presente. A importância de Reinaldo para Virgílio vem do facto de que o facto daquele escrever como escrevia, com cinzel, libertava a sua escrita, deixava-lhe o campo livre para estar mais próximo de uma escrita na água, da dança. 
Brincando um pouco diria que o Virgílio, que é infinitamente mais atrevido e experimental que o Reinaldo, via neste ou o seu S. João Baptista, ou o seu Ricardo Reis.
Há um poema neste livro, dentre os que são dirigidos a Reinaldo, onde se lê: “Ninguém deseja ou pede para que/ tua poesia seja modelo. / Apenas que ela nos habite/ em trânsito/ para outros poetas (...)”, e adiante diz, o mesmo poema: “Que teus poemas/ sejam peixes/ nunca vistos/ nestas águas”. Ora precisamente, os poemas de Reinaldo foram sempre peixes vistosos mas já vistos. Quem podem ser então os peixes nunca vistos? Os da fusão entre Virgílio e Reinaldo, isto é aqueles que surgirão quando o trabalho do tempo, esse ogre desumano, trouxer o esquecimento, e, estando as duas personalidades enoveladas na bruma, os ressuscitar sobre um novo patronímico: Virgílio de Ferreira. 
O que vai dar uma confusão porque tantos e tantos vão confundir o poeta e o prosador de Para Sempre. Mas isso já são as contas de Deus, não será já motivo para a nossa inquietação. 
Duas breves notas para acabar.
Apesar de Reinaldo, nem sempre a influência deste sobre o Virgílio é positiva. Sob influência dá às vezes ao Virgílio uns arrebates de poeta metafísico que nem sempre domina porque o Virgílio é muito mais um poeta espontâneo, um lírico dos elementos, da sensualidade, que aliás se auto-define bem noutro poema deste livro, onde se lê: «Ave sempre migratória, sempre/ de passagem, / entre coisas, matérias, cores e/ transparências, sons que aparecem para logo sumir.» É este poeta da transitoriedade das coisas que em minha opinião avulta e faz de Virgílio um poeta feliz, aquele que mesmo nos seus melhores versos metafísicos nunca se esquece do corpo, como neste: «tormentos da carne na geometria da alma».
Há um verso de Reinaldo que sempre obcecou o Virgilio, ao ponto de o fazer seu: Um voo cego a nada, que aliás pertence ao poema mais “moderno”, mais solto, de Reinaldo. Mas neste poeta o verso prenunciava a angústia, era como uma vida sem rumo. Eu acho que o Virgílio sempre o leu ao contrário e que o dava como sinónimo da frase romana que Pessoa transformou num verso seu e que diz «navegar é preciso, viver não é preciso». Contra a metafísica, a angústia de Reinaldo, Virgílio contrapunha a intensidade da alegria, o prazer de voar por voar. E foi preciso o Virgílio envelhecer para vermos então escrito pelo seu punho: «Próximos é certo/ separa-nos este outro mar/ o voo cego/ a morte». É já o traço de uma luz que se despede, enrouquecido já o jazz e a marrabenta, pois como diz noutro verso «a angústia já devora mineral, o corpo».  
Por isso, numa altura de tanto melindre físico para o poeta, obstinar lançar um livro com o título de A Dimensão do Desejo* só o torna grande, e devemos agradecer-lhe. 
Virgílio, um beijo.
 
*O Virgílio, com 82 anos, fez recentemente uma operação ao coração que teve como efeito secundário um AVC que lhe paralisou metade do corpo