terça-feira, 22 de janeiro de 2013

BANDEIRA & EMILY DICKINSON



 Um post do Rui Almeida no Facebook levou-me a levar para o café o volume que reúne toda a obra de Manuel Bandeira.
Reler Bandeira faz-nos sempre descobrir alguma coisa que nunca tínhamos visto antes (desta vez foi o formidável poema Escusa, de Belo Belo) e isto é tão indubitável como aquele verso de Hafiz que o poeta recupera: “Amarei constante/ Aquela que não me quis”.
Mas o que achei mais graça desta vez foi entrever a poética, presentes em Saudação a Murilo Mendes e em Nova Poética, a que o poeta foi fiel.
O primeiro destes dois poemas fecha assim:
«Saudemos o grande poeta
Permanentemente em pânico
E em flor.»
Este parodoxo não só é exacto em relação ao Murilo como me parece definir o estro da poesia: dar flor no manto sacudido por um sismo de grau oito. No mesmo impulso bolçavam os samurais um haiku celebratório da vida durante o seu harakiri. Essa espécie de isenção face ao desequilíbrio, seja o do interior, seja o do meio ambiente, resume o único tipo de “sageza” (intransmissível, que tem de se experimentar) a que o poeta pode aspirar. Talvez a benigna dissociação de que falava Pessoa em carta a Corte-Rodrigues (se não me engano), para lhe explicar como o seu pânico pela trovoada lhe havia transmitido um soneto.
Paralelamente, em Nova Poética, dum modo divertido, Bandeira prevê três géneros para a poesia: a do “poeta sórdido” (“Aquele em cujo poesia há a marca da vida”), a da “nódoa no brim” (um tecido forte de linho) – “O poema deve ser como a nódoa no brim:/ Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero” -, e a da “poesia é também orvalho” – com a ressalva que se segue: «Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem piedade.»
Paródia à parte, estes três géneros correspondem ao lírico (o orvalho), ao trágico (o brim), e ao dramático/realista (o poeta sórdido).
Mas a lição que se tira do exercício da poesia em Bandeira é que não nos devemos ater a um género ou tema em exclusividade e antes, como ele, não temer planar afincadamente por todos os continentes. Por isso ele escreve em Arte de Amar:
«(…) As almas são incomunicáveis
Deixa o teu corpo estender-se com outro corpo.
Porque os corpos se estendem mas as almas não.»
E contradizer-se depois, no poema Seio:
«O teu seio que em minha mão
Tive uma vez, que vez aquela!
Sinto-o ainda, e ele é dentro dela
O seio-idéia de Platão.»
e assinar rondós, ou redondilhas, ao mesmo tempo em que fazia poemas concretistas.
Esta liberdade, aliada à sua plena consciência da transitoriedade de tudo, é que o levava a não se levar demasiado a sério (ainda que seja um poeta eminentemente sério) nem a deixar-se aprisionar por uma imagem que o mantivesse refém de si mesmo – capaz em páginas contíguas de ser cruel, amargo, cínico, terno, romântico, ou subversivo, e de de transmitir a lucidez da cal.
Tão diferente de alguns poetas que só querem ser um, o mesmo, de risca ao meio, mesmo que com vento.
Daí que o Manuel Bandeira me seja dilecto.
E aqui deixo duas traduções dele de Emily Dickinson:

BELEZA E VERDADE
Morri pela beleza, mas apenas estava
Acomodada em meu túmulo,
Alguém que morrera pela verdade
Era depositado no carneiro contíguo.

Perguntou-me baixinho o que me matara:
- A beleza, respondi.
- A mim, a verdade – é a mesma coisa.
Somos irmãos.

E assim, como parentes que uma noite se encontram,
Conversámos de jazigo a jazigo,
Até que o musgo alcançou os nossos lábios
E cobriu os nossos nomes.

 
NUNCA VI UM CAMPO DE URZES

Nunca vi um campo de urzes.
Também nunca vi o mar.
No entanto sei a urze como é,
Posso a onda imaginar.

Nunca estive no Céu,
Nem vi Deus. Todavia
Conheço o sítio como se
Tivesse em mãos um guia.

 


Sem comentários:

Enviar um comentário