terça-feira, 30 de abril de 2013

CONVERSAS EM FAMÍLIA 3/ NA RESSACA DO REAL MADRID QUE REALIDADE NOS ACODE?

 

 Quando há uns meses encetei uma resposta a Manuel de Freitas, devido à sua resenha ao meu ensaio Respiro, escrevi-me com uma escritora portuguesa de primeira água e que me merece todo o respeito e quando lhe disse que andava em polémica com o Freitas ela perguntou-me «quem é?». O desconhecimento dela, que não era simulado, fez-me rir às gargalhadas, dele, de mim, de nós os dois, da importância que concedemos à nossa opinião…Digamos que foi uma «intromissão da realidade» sobre o nosso caricato orgulho, uma pontada de ar sobre um pequeno lume.
E a coisa morreu para mim ali.
Mas havia duas ou três questões a esclarecer e que me parecem importantes, e por isso, passado uns meses, resolvi repegar no assunto até como forma de ensaiar esboços que depois desenvolverei.
A primeira é sobre o famigerado “realismo”. A segunda será sobre se há ou não uma geração que tenha surgido na net e nos blogues – a terceira é surpresa. Vamos então à primeira:

  

Quando Barthes nota, numa asserção famosa, que “na página, a merda não fede!” abre uma clivagem em cujo impasse se abismam muitas profissões de fé realistas.

E afigura-se-me que só um intratável despudor nos pode levar a reivindicar a pertença a um território (em exclusividade) e, pior ainda, no solo movediço do que seja o “realismo”, posto a realidade caprichar em situar-se sucessivamente à nossa frente, em nosso redor, atrás de nós, não como algo dado e conformado à nossa grelha momentânea de leitura mas como uma espécie de buraco no saber. Podemos sondar a medida do buraco com que a nossa mente a delimita mas não conhecê-la.

Isto é o que Badiou diz da nossa relação com a verdade, mas parece-me ser similar à nossa dificuldade com a realidade.

 

Convém, previamente, lembrar duas coisas: o reparo que Humpty Dumpty fez à Alice, “não me interessa o que tu dizes, mas quem manda no que tu dizes!”, deve ser uma fonte de auto-vigilância contínua, seja qual for o território poético ou estético a que queiramos adicionar a nossa crença, cientes de que seja qual for o estilo que experimentemos não escapamos à suspeita de que raramente mandamos no que exprimimos.

Depois, dizer, “a realidade”, é algo insipidamente genérico e só a ocorrência do indeterminado – o acontecimento que curto-circuita os seus predicados consensuais – lhe abre um sulco e lhe confere um sentido, que reordena a espaços a pontuação dos seus elementos e articula a sua “natureza”.

Porque a natureza não passa do modo como protocolámos a nossa relação com o mundo. Por exemplo, o realismo - em terras africanas, onde a erosão material, física, humana e social, é de mil por cento de aceleração em relação à verificável na Europa - não admite os mesmos contornos, escala, e procedimentos narrativos que são de uso na Europa. O realismo aqui é mais trágico e, por compensação, perpassa-o um suplemento mágico, que se sobrepõe ao quotidiano. Bastou mudar de geografia. Isto é uma coisa tangível, não se trata de uma hipótese.

Ou seja, dificilmente não está a realidade exterior articulada com as condições para o processo de a lermos, com o trajecto da nossa implicação nela.

Deste modo, caucionar uma referência tutelar é, por conseguinte, uma alucinação consentida e ao dizermos “o realismo” definimos apenas uma das cinquenta formas de decoração que, segundo o hinduismo, o culminam – estabelecemos a propriedade de um protocolo.

Nelson Goodman há muito esclareceu: i) as realidades não são a realidade; ii) há uma necessidade de rebatermos incansavelmente a naturalidade do signo.

 

Talvez haja, isso sim, e disso não se fala, dimensões exotéricas e esotéricas da arte, no contexto de uma tradição ou género – como acontece nas religiões – que condicionam o seu “fazer mundo”.

 

Entretanto, acredite-se no que se quiser: na “pureza em arte”, no “ascético jejum da metáfora”, no “primado do referencial”, no primado da representação sobre a expressão: porém, se não houver um elo que permita fundir uma “escrita realista” com a totalidade da experiência que desconforma a realidade, então é melhor reconhecer que no seu seio a própria discursividade se estrutura por géneros, sem que se seja legítimo descortinar aí a supremacia do “western” sobre o “thrilher”, do “sujo” sobre o “puro” - e aceitar nas suas margens o diverso, outros olhares.

A haver um realismo terá de ser trans, como o praticam um Ashbery ou um John Berger, ou como foi sendo o de Carlos Oliveira – que talvez franzissem o nariz ao epíteto porque a pluralidade não necessita de fórmulas redutoras. 

Talvez a esfera da “nova austeridade”, do “sentido comum”, do “novo realismo”, como se lhe queira chamar, tenha estado menos infiltrado pela “pureza” dos princípios do que por aquilo a que Karl Mannheim chamou outrora “a influência da concorrência no domínio do intelectual”.
O que, se dá uma legitimidade sociológica à actuação da constelação dominante em que se converte cada nova geração, ao mesmo tempo a tira do sério - ficam os seus arautos parecidos aos náufragos que creem poder ditar as suas condições ao mar.

 
 
Vale a pena transcrever este trecho de Robert Calasso, sobre Mallarmé: «Nunca dar o objecto mas sim a ressonância do objecto. Porquê esta obsessão? Muitos leitores recentes julgaram entender que neste preceito mallarmeniano está implícita uma redução do mundo à palavra, com a evidente consequência da plena auto-referencialidade e auto-suficiência verbal. Mas não se trata disso: pelo contrário, essa posição empobreceria e tornaria vã a operação oculta que ali tem lugar.
O pressuposto desta interpretação é o mesmo postulado que rege em boa parte o nosso mundo, que o ajuda a funcionar, mas que ao mesmo tempo o torna inepto para acolher uma boa parte do essencial. Na sua forma mais concisa, tal postulado declara que o pensamento é linguagem. Mas acontece que nós não pensamos por palavras. Pensamos às vezes em palavras. As palavras são arquipélagos flutuantes e esporádicos. A mente é o mar. Reconhecer na mente este mar parece algo proibido, que as ortodoxias vigentes, nas suas diversas versões, científicas ou só commonsensical, evitam quase por instinto. Mas radica aqui, precisamente, a bifurcação essencial. É aqui que se decide em que direcção se moverá o conhecimento.» (sublinhado meu)
Extraordinária intuição.
O «mar» é apenas outra forma de lembrar que nós não observamos o mundo de fora, brotamos do seu remoinho. A mente é o mar que rodeia o remoinho. O que Foucault intuira com o seu «campo epistemológico».
Lendo uma parte significativa da produção poética contemporânea, em Portugal, fico com a sensação de que há uma quantidade excessiva de gente para quem a mente, apesar do autor se afirmar apegado a uma órbitra referencial, é unicamente linguagem, e se arma de uma aversão pânica por quanto seja elipse, sugestão, gesto, sombra, contraponto com o «off», deslocação da metáfora, silêncio e profundidade. O ror de pessoas que acusa um «horror vacui» é impressionante. Afanosamente agarra-se à cápsula das palavras e, protegida por uma armação de proposições, tenta aplanar o espaço e o tempo até à extensão lisa, com as dobras do raciocínio a multiplicarem-se num mero coleccionismo.
Como em Hamlet.
Shakespeare, nesta peça, multiplica os espelhos, as simetrias, as comparações. Hamlet sente-se um “príncipe de palha”, que vale dez por cento de Fortinbras, nutrindo do mesmo sentimento de Claúdio, seu tio e novo rei da Dinamarca, em relação ao irmão a quem usurpou o trono e a mulher.
Ambos – Hamlet e Claúdio - acedem à sua realidade como a um décor esburacado pela ausência dos princípios. Ambos imagens desfocadas, aparências de um ideal que o destino refractou numa «metade pior», fantasmática.
«Vou arrastar estas vísceras para o quarto ao lado», atira Hamlet à mãe, depois de acusá-la de ter menos memória e vergonha que uma besta irracional.
E, contudo, o pendor para o raciocínio do príncipe é uma armadilha. Mesmo quando se interroga se deve “como uma puta”, descarregar o seu coração pelas palavras, o seu diagnóstico depende delas, gralha com pilhas duracel: words, words, words.
Hamlet adivinha em Fortinbras o seu avatar sublime mas, ao olhar para tudo segundo o ponto de vista da doença, a sua consciência torna-se, no dizer de Northrop Frye, «um princípio de morte, um recuo diante do acto», brotando-lhe as palavras como metástases indefinidas da identidade.
Em Hamlet os problemas nunca deixam de ser levantados mas mil alçapões mentais impossibilitam a sua resolução, e não podia ser doutro modo: na óptica do virtual o real não passa de vestígio – é um cadáver de referência. Compreende-se que esta peça seja, segundo Fry, a mais claustrofóbica das peças e um lugar onde corre uma tragédia sem a lebre da catarse.
Para Hamlet, os seus conflitos devém “imagens de repertório”. Porque em Hamlet pensar é um gadget. Aqui temos uma das características daquilo com que se confunde hoje “o realismo”: a frivolidade de pensar que recobrimos a realidade opinando sem cessar sobre ela…
Julgamos que face ao «complexo de Hamlet» que invadiu muita da poesia de predominância referencial, em Portugal, seria útil lembrar as razões do menor apreço de Wittgenstein pelo bardo inglês. Para Wittgenstein a soberania e a singularidade manipuladoras que vicejam na habilidade verbal de Shakespeare geram uma significação meramente «fenoménica».
E a simples fenomalidade não é fiel à realidade da vida.
Parece-me um juízo excessivo – que serve para Hamlet e Iago, por exemplo, mas não para muitas outras personagens shakespearianas - mas não deixamos de encontrar neste alerta estranhas ressonâncias com o panorama da literatura actual.
Hamlet ejecta (não emite) as palavras como se fossem “vírus” (e daqui o escândalo do corpo, a culpabilidade do sexo) e estamos sempre a ver a acção do seu próprio cérebro, a sua refracção instantânea e sem profundidade. Germina, inapelável diante duma aflitiva impossibilidade de catarse.
Confiemos: «La poésie ne cesse de faire allusion à ce qui nous échappe au langage, à ce qui le travesse et le dépasse» (Michel Camus). O que não tem nada a ver, desenganem-se, com inefáveis. Acho que pouco se tem reflectido sobre este aviso de Mallarmé: Ali, onde quer que seja, negar o indizível, que mente!”. Trata-se antes, por conseguinte, de lembrar que a materialidade dos actos, de que as palavras fazem parte, está mais nas relações, na “invisibilidade” das permutas, do que na objectividade dos factos, naquilo que é relatável à vista desarmada…

A “visão” da realidade, a havê-la, brota de um acto. E a duplificação de escrever pode engolfar-se na sua matéria se a mão, movida por alguma cegueira, se entrosar nela, fazendo transparecer a dinâmica relacional da vida.
O que pode ser captado de diversas formas e também e até num modo realista, como neste extraordinário poema de Philip Larkin (poeta que não é da minha cabeceira, embora alguns poemas seus sim):

 
VENTO NUPCIAL

 
O vento soprou sem parar no dia do meu casamento.
E a minha noite de núpcias foi a noite do vendaval;                                 
A porta do estábulo batia, batia tanto,
Que ele teve de ir fechá-la. Deixou-me
Estonteada à luz da vela, a ouvir bater a chuva;
Olhava a imagem do meu rosto no castiçal entrançado,
Sem nada ver. Quando ele se voltou e disse
Que lhe pareceram inquietos os cavalos fiquei triste
Por faltar naquela noite a homens ou animais
A felicidade que eu tinha.

 
                                         Agora já de dia,
Ao sol tudo são novelos emaranhados pelo vento.
Ele saiu para ir ver das inundações e eu
Levo um balde amolgado ao galinheiro,
Espalho o milho e fico a olhar. Vejo o vento
A vergastar nuvens e florestas, a sacudir-me
O avental e a roupa pendurada na corda de secar.
Mas como contas dum rosário desfiadas entre os dedos
A representação de ti no vento perpassa tudo o que faço –
Obsessivamente. Conseguirei de novo dormir
Com esta manhã perpétua partilhando a minha cama?
Poderá a própria morte drenar
Estes novos lagos de prazer, concluir
O nosso ajoelhar como gado junto a águas generosas?

                                  (trad. de Maria Teresa Guerreiro)

 
Creio (hoje, amanhã não sei) que o núcleo do poema está no que sublinhei. O resto é a extraordinária mise en scéne com que o autor mete tudo em relação, e nos faz ver o vento que tudo interpenetra e contamina - sem afinal tornar passageiro o sentimento. É esse contraste que magnifica o poema. Porém o que consagra este poema não é o facto do seu conteúdo remeter-nos para um mundo referencial, comum a todos, o que importa nele é a sua realização verbal, que uma situação humana se traduza com uma inigual plasticidade expressiva, e ao mesmo tempo tão justa, sem uma palavra a mais, sem um juízo…     

 
A grande questão, para mim, não está na maior ou menor medida de mimesis que o poema contenha mas nesta formulação de Salah Stétié: «O testemunho na circunstância, digo, na poesia, não é feito senão de palavras e é esta mesma a sua principal fragilidade, aos olhos daqueles, os mais numerosos, para quem a palavra é uma forma melhorada do nada. Para os outros, entre os quais alguns poetas que nós colocamos no topo da nossa estima, a palavra é uma forma, penosamente diminuída, da totalidade pressentida». (L’interdit, 93, José Corti)
Para quem considera a palavra «uma forma melhorada do nada» a poesia aparenta-se à decoração ou, nos casos mais ‘sérios’, a uma ourivesaria com um ofício expresso em medidas mensuráveis. Daí que tão facilmente se caia na tentação de definir parâmetros, ou a pressa com que se confunde realismo com um género previamente convencionado.
Na verdade, nunca pode haver “um retorno ao realismo”, sem se cair na literatice, dado que a nossa ancoragem na “realidade” pode, se tivermos a energia e a “habilidade” para isso, quanto muito abrir poros onde o não-poético abra janelas para uma nova sensibilidade expressiva mais coincidente com a realidade pressentida, mas este movimento para «o fora», para a totalidade, não pode ter estilos pré-definidos. Por isso diziam os chineses, escreve Kenneth White, que para captar a verdadeira poesia é preciso encontrar-se face a face com um homem vivendo a três mil quilómetros de si. Aquele que nos desampara totalmente as marcas de reconhecimento.   
Daí que talvez, para mim, o maior realista do século XX se chame Henri Michaux.

Segue-se igualmente que não me admita como poeta “a quem se consente”.
Só a minha solidão e a sua zona de laminação me guiam: não porque entenda a arte e a poesia como espaço sacrificial mas porque no limite há uma longitude de destino que me desobstrui – dom que é gratuito mas exige um preço a que não quero nem posso furtar-me.
Sob risco de tudo se tornar decoro e venalidade.
Eu meti-me a dez mil quilómetros. E se a espaços reencontrei a poesia, temo, por vezes perder a memória, atolar-me no desprendimento que convoquei.
Mas o melhor de tudo foi ter descoberto nesse desprendimento que há princípios mas não O princípio. Quando queremos carregar com a bossa d’ O princípio – o “realismo”, por exemplo - ficamos como Diógenes, no seu tonel, condicionados pelo mundo que procuramos negar.
O que não quer dizer que não exista a fidelidade, aos princípios. Mas isso é já outra discussão.

 

 

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