quinta-feira, 16 de maio de 2013

AS MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE ANTÓNIO CABRITA

             
                                                    mapplethorpe: saudades de um corpo

Há três ou quatro dias, fiquei preso no elevador. Derramou-se-me este conto lá dentro, ou vazou-mo o crânio, à velocidade que a mente nos catapulta nessas situações. Escrevi-o entre ontem e hoje. Aqui fica. Dedico-o ao Helder Macedo:

 
A ranhosice una e indivisível: falo do elevador do meu prédio que estacou de repente, sem ter esganiçado um cabo, sem um ronco de sobreaviso. Simplesmente parou, como o dentista que suspende o alicate ao ser tomado de uma excruciante empatia. Entre dois andares. Parou e abriu a porta para que, corrida a cortina, eu me visse diante do espectáculo das entranhas, face a uma parede cega e encardida.
Se já não havia espanto em mim, voltou a aflorar. Primeiro vociferei, merda, imaginando quantas horas ia ficar fechado naquele féretro de caca & alumínio, e pus-me a adivinhar o botão de alarme. Qual deles, entre tanta rasura? E chegaram-me, de supetão, os pequenos sustos e as apreensões maiores. Jorraram então as lamentações, foda-se, nunca irei a Veneza, não vou ter dois meses para ler exclusivamente e de cabo a rabo Os Cantos de Pound, nem para reler a Divina Comédia, não vou conhecer os próximos livros de Christian Bobin, ou, não irei ao Japão seguir as pistas do Dogen, o meu segundo sonho mais renhido, porra, lá se me vai a oportunidade de voltar ao Prado e às salas do Goya, e ainda nem cumpri a promessa de passar uma semana só a ouvir as sinfonias do Mahler… um minuto e meio de lava lamentosa e torturada, em que não me veio à cabeça a tristeza de deixar de ver as paisagens de dunas e palmares, ou o sol, ou o mar… afinal, necessidades secundaríssimas em mim.
Não sei de facto o que faço em África, bolçei. A vida tem destes desnortes. Comecei então a notar como a caixa do elevador estava cheia de mosquitos. Poisei o computador e, calmamente, entretive-me a estalar um por um, só para passar o tempo… esse fio de tempo que se quebrou num átimo, num apagão, mal dei como…
Acordei quatrocentos anos depois e vi, decomposto aos pés do laptop, o meu esqueleto. Não compreendi de imediato, parecia-me um daqueles artifícios que só o cinema manobra habilmente, um efeito-especial que me secara de carnes o cálcio exposto. O laptop, entretanto, estava oxidado, mas quase incólume, lembrando-me a virgem que envelheceu manca de relâmpagos, enquanto na minha alma, esta que vos fala, e que por um inesperado oblívio permaneceu grudada à caixa soterrada por quatrocentos anos de escombros, não havia um nexo que pudesse encaixar na feição das coisas. Não estava preparado. No Tratado do Estilo, escreveu Aragon: «A precisão é de si mesma que brota, não tem autor». Eu olhava os meus ossos, a sua precisão, e não havia modo de poder dizer como eu me sentia mijado, descoroçoado de todo, em decréscimo. E por que não conseguia eu sair dali?
Finalmente, a horrenda aventura acabou, não saberia precisar quanto tempo depois. Mas aliviou-me a insónia que já me tingia de roxo a puta da alma (perdoem-me a imprecisão do verbo) ver-me num prostíbulo, onde, acompanhada, podia finalmente relaxar um pouco de pernas cruzadas: havia outras alminhas comigo. Quer dizer, outros corpos, suponho que com uma alma a tiracolo, embora para mim estas fossem invisíveis. O que importa é que me retiraram da caixa do elevador, ou antes, que a descoberta do laptop foi considerada tão preciosa, um achado de tal alto valor científico, que ao levarem o aparelho me arrastaram com ele, preso ao écran por um invisível, nunca imaginado, cordão umbilical. Afinal…- balbuciei.
Deu para olhar em volta e num relance perceber que crescera um matagal no lugar da antiga cidade de Maputo, depois fez-se-me negro: desmaiei.
Levei mais de um mês a reconstituir a história do que acontecera. Fui nisso ajudado pelas conversas do ser que se dedicou a desencriptar os PDF e o Word do meu laptop (para eles a tecnologia era tão antiga que a tarefa se revelou um bico de obra) com outros que o visitavam; as narrações com que “outros especialistas” o foram enquadrando, completaram-me o puzzle.
15 de Outubro de 2014: Israel lançou um míssil nuclear sobre uma base militar do Irão, que ripostou com três mísseis sobre a Turquia, que não se conteve e encheu de gás sarim Teerão, tendo-se o regime iraniano desforrado com uma bomba de neutrões (onde fora aquela gente buscar aquilo?) sobre Lahore; o Paquistão, por sua vez, gastou os últimos mísseis a rebentar com Delhi, tendo a Índia replicado com três tiros num porta-aviões da Coreia do Norte, que não esteve com meias medidas e apontou toda a artilharia ao Japão, que viu nisso a mão sinistra da China e fez voar doze ogivas nucleares rumo ao Império do Meio, o qual, tendo descortinado aí manobra do Tio Sam, pulverizou Seattle e a Califórnia; os EUA, por seu turno, entenderam de imediato que Putin estava na sala de comando de tudo aquilo e bombardearam Moscovo, Caracas, Cuba e Coreia do Norte, tudo à vez, e o presidente desta, Kim Jong-Un,  antes de sucumbir adquiriu uma bomba nuclear à Al Quaeda que fez saltar Sydney pelos ares; não sem que depois a Austrália deixasse de reduzir a cinzas o cão Indonésio, que foi desencantar uma armada para invadir Madagáscar, tendo os concidadãos deste país procurado safar-se num êxodo continuado para o continente, para Pemba, num fluxo de milhares de botes, kayaks, cruzetas, barcos à vela, navios de carga, ou simplesmente em passo de corrida sobre o dorso dos imensos milhões que insensatamente procuravam nadar a caminho da costa, tantos e tão empastelados numa enorme massa natatória que Pretória, entrevendo ali o enxame de terroristas que iria visar o seu sistema militar e económico, procurou encurtar razões recebendo-os com uma ogiva nuclear que pelo capricho de uma trovoada das boas foi atingido na sua trajectória por dois raios que o desviaram para Maputo, onde deflagrou oito segundos depois de eu ter entrado no elevador.
Fora um mistério eu não ter sido reduzido a poeira cósmica, como praticamente toda a cidade, e a cápsula do elevador haver-se mantido quase incólume num vão entre escombros, ao invés de colapsar, esmagada, podendo então o meu cadáver sofrer a deterioração natural que apraz ao extravio da vontade.
Grave, mais grave, muito mais grave, foi contudo a catadupa de insanidades que se seguiu e o alastramento da violência que provocou uma quase extinção de espécie em três meses e uma nuvem radioactiva e castanha que durante três séculos cobriu o planeta como uma barra de chocolate. A hecatombe atingiu uma desmedida, uma brutalidade, que em poucos meses apagou a mínima réstia de registos: cidades comprimidas em detritos, bibliotecas reduzidas a cinzas, cinematecas convertidas em linóleo, arquivos prensados como torresmo, dvds, flashes e drives fundidos pela combustão; dossiers, livros, papéis e jornais devorados por milhões de ratos linguarudos e cegos, mutantes, que assomaram dos escombros e desataram a alimentar-se da memória dos homens e depois, à míngua, se entredevoraram. Nada sobrou à loquacidade daquele inferno. Não sobrou uma letra, um dente de rato, uma listagem que fosse.
Daí a importância do meu laptop, tratado como uma pegada do yeti.
O meu decriptador, não sei designar doutro modo esta estranha criatura, ficou contentíssimo com os milhares de pdfs que encontrou no disco duro, embora simultaneamente o assustasse o volume de trabalho de tradução que tal subentende. Procedeu a uma inventariação do que encontrou, o que lhe permitiu assinalar repetições e áreas temáticas, que, duma forma muito generalizada, digo eu, o fizeram ensaiar algumas classificações. Confundiram-no mais os words, os meus documentos, e, nestes, sobretudo os meus contos e romances, que não sabia em que género situar, pois, suspeito, nem a noção de género reconhece. Mas aquilo que o intriga, inexoravelmente, são certas passagens de ficção que a rainha Vitória - sim, essa das cataratas e da macilenta, obtusa, moral estampada em tantos selos de época - classificaria de indecorosas. Aí não sabe como mover-se, definitivamente, o que pensar, como traduzir ou aceder a um mínimo sentido em relação ao que lê. E eu não deslindo como socorrer às íris abismadas da criatura, que, estranhamente, nunca piscam, e se contraem ou encolhem numa resolução vítrea que me lembra a do alienígena Jeff Bridges em Starman, de Carpenter, naquela sua sôfrega e desfasada aprendizagem do espaço sensorial dos humanos. Porém o que me lixa são as suas traduções, que truncam, transformam ou retorcem parágrafos inteiros.
Não julguem que imagino coisas, vou dar exemplos. Onde eu escrevi,
«Ela gostava de tudo em mim mas gostava sobretudo da minha língua. Chupava-a, puxando por ela até doer-me. Não era a primeira que adorava este meu órgão esponjoso, maleável, que dobro em barquinho e comando com manifesto controle, desde que um acidente em miúdo me cortou o freio e passei a expô-la mais extensamente que o normal. Gostava que eu a mexesse como era preciso.
Desde miúdo, depois do estúpido acidente de viação a caminho da Macaneta que fez a ponta do guarda-sol enterrar-se-me na boca sob a língua, decepando-me o freio, quando a minha prima me fazia entortar os olhos e imitar o camaleão percebi que podia converter a minha amputação num trunfo, num atractivo, como outros aprendem a tocar guitarra,  se tornam craques na capoeira. Habituei-me a tratar este meu meigo e túmido músculo bocal como uma espécie de mascote com a sua vida própria mas anichado na minha boca por conveniência e lealdade mútuas.
Na praia em grupo, quando elas aproximavam da minha boca o sorvete e perguntavam ´queres?’ era para verem a minha língua rodeando em 180 graus o gelado e servindo-se como uma concha da sopa. Seguia-se à primeira oportunidade, já cansados de mergulhos e voleibol, a exibição do costume. O que eu adoraria ser um artista de circo que se pusesse a ler o jornal enquanto a ponta da língua lhe desviava a franja dos olhos. Mas não chegava a tanto. O meu rosado promontório coçava o sinal que tenho sob o queixo ou, pondo-a bicuda, levantava-lhe a ponta na vertical como uma naja a sair do cesto, antes de desfazer o efeito desenhando um degrau, a minha habilidade mais requestada. As raparigas dividiam-se, umas achavam nojenta “a minha arte” e algumas ficavam secretamente excitadas.
Ela ficava lasciva assim que me via lamber os lábios e num ápice caía-lhe uma gota de transpiração dos seios para o umbigo. Não sei como é que ela fazia aquilo. Punha-me doido só de pensar nisso.»
ele reduziu os quatro parágrafos ao seguinte:
«Ela ficava recreativa assim que me via lamber os lábios e num ápice isso parecia preencher-lhe as abóbadas de paramnésias. O que invariavelmente me fazia recordar os deveres que ainda tenho por cumprir esta tarde…».
Abóbadas? Que abóbadas? Paramnésias? Deveres?
Eu escrevi:
«Abordo directamente o assunto, há alguma crise de cama entre ti e o teu marido? Ela tartamudeia e então ele percebe: ela finge. Como fingiu quase sempre, até se terem conhecido e ela se ter fundido nele. Ainda hoje ele não sabe porquê? Nada fez de especial, nunca se gabou de ser um ás na cama. Mas ao seu contacto a vagina dela deixou de ser um cabebal hirto e seco para amolecer como o polvo que foi previamente batido e se desfaz em água na boca. E gozou. Pela primeira vez».
E ele teve a ousadia de traduzir:
«Platão assegurou que a linguagem é extremamente enganadora, ela aparenta ser precisa, exacta, mas de facto não é mais exacta do que a pintura ou o desenho..., perambulei eu, para depois atalhar, o teu marido engana-te? Ela olhou a chuva pela janela, poisou um dedo no rebordo do copo e contornou-o, antes de perguntar-me, Emprestas-me o teu Aristóteles?»
Não me excita nem me comove ser lido no século XXIV desta maneira falsa, rebuscada e sem um mínimo de veracidade em relação ao pouco brilho que terei emprestado às narrativas. E que bizarro retorno do humano é este, de volta aos princípios mais retrógados, à moral mais bacoca e restritiva, ao corpo-a-prestações?  
Fiquei numa fúria quando espreitei a tradução seguinte. Pertencia a um livro meu quase esvaziado de sexo, a um ponto que quando o lancei ironizei, os meus fão vão ficar desapontados com este livro porque nele quase não se descrevem actos de volúpia e quando isso acontece são deceptivos, ganhando aí uma outra legitimidade diegética. Qual quê, ele submeteu-me a um regime que me desengajava de todo, muito para lá do elíptico. Eu havia escrito:
«Litos penetra-a e entrança-lhe o corpo nos braços e Argentina ouve a bola de basquete no piso de cimento do campo de treinos, nas traseiras da casa. Argentina agarra-se ao sincopado ritmo da corrida dos miúdos, aos seus gritos, ao sorvo de ar na trajetória da bola, ao repique da bola, saltitante, suspensivo, no arco do cesto. Argentina procura adivinhar o posicionamento dos jogadores, a sua evolução no campo, a natureza das faltas, o jogo das mãos no despique do esférico, enquanto Litos a embucha poro a poro, nem reparando que ela está meio seca, tão seca como o baque da bola quando rebenta»
e o meu tradutor trasladou:
«Ao invés de tomar o cavalo imediatamente, Litos segura o cavalo com o rei a fim de dar ao seu rei uma casa em d8. Apesar de o rei preto usar 2 jogadas para alcançar d8 depois de 8...fxe6 9.Bg6+ Ke7, a dama preta pode ser colocada na casa superior c7… etc., etc.»
Seria um mau intérprete? Seriam os nossos contextos mutuamente intraduzíveis? Seria apenas uma questão cultural, um tão sistemático diferimento dos conteúdos sempre que o texto roçava o corpo ou lhe pronunciava a dança e os apetites, ou tratava-se de uma censura pessoal, associada a qualquer tipo de crença que depreciava a presença e o papel do corpo nas relações humanas? Em dois mil e quatrocentos? E que língua era aquela para o qual ele traduzia, tão próximo do cirílico, e que eu entendia por habilidade inata aos mortos, que entendem todos os idiomas?
Senti-me logrado. A posteridade não me servia o prato da glória e tratava-me como um pónei esgotado em ignotos hipódromos, a quem, com minúcia, se nega o rol dos seus poucos triunfos, o esclarecimento sobre o seu lugar no ranking das apostas. Tantos quilómetros de treino em vão, tantas canchas extraviadas em dissolutas ferraduras, via a vaidade desenlaçar-se como a cebola que nem aos desertos arranca lágrimas… Nas mãos deste assassino não passo de uma quimera, do marasmado fantasma do centauro que após séculos em fuga é capturado pelo zelo do intérprete que o quer converter em castrati. De que me serve o reconhecimento dos vindouros, se sem as pitadas de sexo ninguém desenjoar das baboseiras que lhes servi?
Estou nesta bruma há quanto tempo, entre o trauma e a insuperação? Liga-me um inquebrável cordão umbilical ao laptop e não sei como livrar-me da tortura duma armadilha - está visto - que em mim próprio enxertei.
Foi então que vi, num breve intervalo do trabalho, o meu tradutor baixar as calças de licra (se não é, parece) e abrir-se-lhe uma ranhura na pélvis onde introduziu um pequeno disco, suponho que uma bateria, fechando-a sobre coisa nenhuma, sobre nada: era despojado de membro, pilão ou salsicha. Uma janela cega. Nem mais. É um cyborg, o meu tradutor. Este já não é o meu mundo.
Há horas - em quantas horas se defenestra a eternidade? – que procuro recordar-me de como se fecha o programa nº5, nas máquinas de lavar loiça.

 
                                                

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