terça-feira, 14 de maio de 2013

DENTRO DO ELEVADOR E OUTRAS MINUDÊNCIAS

                                                     o mosquito, de manuel san payo

E o elevador parou. Sem esganiçar um cabo, um ronco de sobreaviso. Parou. Entre dois andares. E abriu a porta para que eu me visse nas entranhas, diante duma parede cega e encardida. E se já não havia espanto em mim, voltou a aflorar. Primeiro vociferei, merda! Imaginando quantas horas ia ficar naquilo, pus-me a adivinhar o botão de alarme, que nesta velha carcaça não está assinalado. Qual deles? E vieram-me, de supetão, os pequenos sustos e as apreensões maiores. E de coração suspenso jorraram-se as lamentações, merda, nunca irei a Veneza, não vou ter dois meses para ler exclusivamente e de cabo a rabo Os Cantos de Pound, nem de reler a Divina Comédia, lá se me vai a integral da filmografia do Godard, não vou conhecer os próximos livros de Christian Bobin, ou, não irei ao Japão  seguir as pistas do Dogen, o meu segundo sonho mais entranhado, merda, lá se me vai a oportunidade de voltar ao Prado e às salas do Goya, e ainda nem cumpri a promessa de passar uma semana só a ouvir as sinfonias do Mahler… um minuto e meio de lava lamentosa e torturada, em que não me veio à cabeça a tristeza de deixar de ver as paisagens ou o sol, ou o mar… em mim, afinal, necessidades secundaríssimas. Dentro de um elevador fechado só penso na cultura. Não sei de facto o que faço em África. A vida tem destes desnortes. De repente noto que o elevador está cheio de mosquitos...

 
Queria ocupar um lugar mínimo neste mundo mas tive cinco filhas, e fui inconstante como o raio que adivinhando a força do seu próprio trovão se desvia, na esperança de não rebentar com os tímpanos.
Quem teve culpa dos meus cinco rebentos suponho ter sido a orgia de leituras nocturnas que tem sido a minha vida. E algum mimetismo: eu sou um homem de admirações e admiro o Jorge de Sena e o Assis Pacheco, oito e nove filhos, respectivamente – se bem me lembro. Bom, a cabotinice de os imitar foi minha, aí sofri a passividade emocional, de que fala o Espinosa. Mas concluo que em metade do que fazemos – macaqueamos. Podíamos era ter consciência disto um bocadinho mais cedo, para desviarmos o alvo.   

 

A orgia de leitura desta noite foi em torno de Espinosa. Julgo ter achado a porta de entrada que me levará a ler de rajada várias coisas de e em torno de Espinosa - o livro que lhe dedica Roger Scruton, onde entre outras gemas se lê:
«Espinosa, assim como Pascal, viu que a nova ciência inevitavelmente "desencanta" o mundo. Tomando a verdade como o nosso critério, desentocamos de seus antigos domicílios o miraculoso, o sagrado e o santo. O perigo, no entanto, não é o fato de seguirmos esse critério - pois não temos outro, mas o de só o seguirmos até o ponto em que perdemos a nossa fé, e não longe o suficiente para que a recuperemos. Livramos o mundo de superstições úteis, sem que o vejamos como um todo. Oprimidos pela sua falta de significado, nós então sucumbimos a ilusões novas e menos úteis, superstições nascidas do desencantamento, que são tão mais perigosas por tomar o homem, e não Deus, como o seu objeto.
O remédio, conforme nos lembra Espinosa, não é retroceder para a visão do mundo pré-científico, mas o de seguir mais além no caminho do desencantamento. Perdendo tanto as velhas quanto as novas superstições, descobrimos finalmente um significado na verdade em si. Pelo mesmo pensamento que desencanta o mundo, chegaremos a um novo encantamento, reconhecendo Deus em tudo, e amando as suas obras no acto mesmo em que as conhecemos».
Não sei se Deus (o da tradição juadaico-cristã) me interessa nesta equação, mas o sagrado sim.
Como eu gostaria de ler isto aos meus alunos.

 
Alguns canteiros catados num caderno:

A cada morto o universo contrai-se, faz-te saber que o amanhã não está contido na palavra «hoje» - e o gato come o teu sorriso.

Nunca nos saturaremos,
Nós os dois.

Temos tantas coisas
Para não dizer.

É como o mar
E as marés.

 
Convém-me muito, esta de Séneca, «náufrago fui, antes de ser marinheiro».

 
A bondade não é um selo que se meta numa carta
– é rara, mesmo entre os nossos.
Tão rara como a carta que vem de alhures.

(Que raio queria eu dizer com os nossos?)

Calhou-me a mesa que fica debaixo da televisão. Uma cerveja média, como sempre. Vinte fixam o ecrã, quatro observam-me – sou para eles um objecto de faiança. Os restantes estão presos aos quanta da electricidade estática. A vida está ao lado, etc., etc.

 O falcão alisa o azul ou eriça-o?

 

 

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