segunda-feira, 6 de maio de 2013

POLINIZAÇÃO DO TEMPO

                                                                          hogarth

O meu amigo Ricardo Martinho Gaspar levou-me a refletir sobre o tempo. Que importância é que isto tem? Nenhuma. Nem eu nem ele pretendemos que tenha outro significado. Mas agrada-me que seja uma forma diferente de uso do FB: a instigação. 

Anular o tempo é o desejo de todos nós, não é, Ricardo?
Também julgo ser o nosso maior erro.
Nós podemos criar o nosso tempo. Não temos de anular nada. Só temos de o multiplicar.
Não falo, evidentemente, do tempo físico, nem do intervalo psicológico em que pomos entre comas a sua duração, mas do “trespasse” que podemos cometer no seu caudal, propiciando a génese de uma nova hidrografia, de outro ritmo, doutra foz - inclusive.
Por exemplo, a antecipação psicológica no dentista, quando estamos à beira de nos ser arrancado um dente, precipita-nos num ritmo ao qual nós não dominamos a cadência – é a dor, a sua sensação, medo ou iminência, quem nos dá a medida do ritmo.
Aí queremos suspendê-lo, anulá-lo – estamos em conflito com os marcadores do ritmo.
Nós queremos anular sempre o que nos é desagradável, como se isso fosse desejável. Acontece que não é, e se falei antes em antecipação é porque não existe o tempo sem a “expectativa ou a antecipação” – dois marcadores de ritmo.
O tempo, tal como o experimentamos, é muitas vezes um corolário destes.
Veja-se, por exemplo, o tempo político. Pode funcionar por ciclos ideológicos ou por unidades entrópicas, mas é também ele dependente de expectativas e antecipações – confundindo-se aqui igualmente com os seus marcadores. Contudo, o panorama só muda realmente quando se intromete no estado de coisas uma “exterioridade” que rompe o fluxo e as suas cadências e impõe o inesperado. Foi o que aconteceu com o 25 de Abril ou com o Maio de 68 – a natureza do que se passou ultrapassou em muito os limiares do expectável. Por isso foram acontecimentos, não meros efeitos de algo anterior.
Neste caso, o tempo muda, ou antes, multiplica-se: ramificou-se. E criou outros ritmos.   
Sempre que estamos desconfortáveis com um ritmo queremos mudar – aí desejamos suspender o tempo, mas este passo não é ainda o salto decisivo, pois estamos ainda na órbitra do ritmo que nos domina.
Por isso me parece empobrecedora esta época em que vivemos: apesar da crise as pessoas ainda raciocinam, agem, actuam, nos mesmos moldes políticos, como se se tratasse apenas de mudar um marcador por outro, quando se trata de pensar como mudar a natureza e os mecanismos do poder – o que está muito para além da ingénua bipolarização “esquerda/direita”.
Não é apenas o aspecto agónico que nos leva a cindir ou a suspender o tempo.
Podemos igualmente dizer assim: a arte suspende o tempo. A música, uma boa peça ou filme a que assistimos, uma leitura que nos coloca entre comas, suspende o tempo, suspende os seus limites. E isso é bom.
Porém, aqui ainda não impusemos outro ritmo. Suspendemos o tempo, enquanto consumidores das possibilidades que nos oferece o seu ritmo. Não fizemos a sua “revolução”, como a da pintura abstracta, que aboliu tudo o que estava para trás e apresentou uma nova figuração, outro ritmo.
É o que nos ensina a parábola da figueira: atingir o “káiros”, fundirmo-nos na sincronicidade, pode não ser bastante.
Creio que o tempo não passa da propagação dos seus marcadores no nosso corpo.
E que no gesto criativo há por vezes vislumbres que nos impelem a passar para lá da “terra suspensa” na direcção duma outra geografia, doutros limiares, que nos fazem romper qualquer hábito.
Aqui abrimos um novo escaninho para o tempo, e dá-se, creio, aquilo a que Heidegger chamava o “fazer-se mundo”.
Quando estamos ainda no encalço de um ritmo estamos ainda reféns – ainda que prazenteiramente. Nós agimos e comportamo-nos como consumidores do tempo e não como seus criadores.
Nunca se viu suficientemente o que andou a fazer Penélope com a tapeçaria que desmanchava todas as noites. Se ela voltasse ao mesmo padrão, e desenhasse o mesmo motivo no dia seguinte, tornar-se-ia notado que algo não avançava – e em breve haveria revolta
entre os pretendentes. Se eles não notaram que ela desmanchava de noite o que havia
desenhado de dia era porque ela os confrontava diariamente com um desenho novo, o que não lhes permitia avaliar em que passo ia ela na composição.
Ela nunca pretendeu suspender ou adiar o tempo, para não adiar a decisão: ela criou novas sendas para o tempo, e pôde ser fiel porque reinventou a memória como um avesso do novo que ela todos dias tinha que mostrar.
Do mesmo modo, pensar tem pouco a ver com o raciocínio, com as suas operações lógicas e o curso das opiniões. Esta é uma função menor da mente. Pensar é romper, e por isso acontece raramente.

 
Não sei como a coisa aconteceu, em que teclas terei eu tocado para me aparecer de súbito no ecrã do computador uma antologia de um poeta que desconhecia ter ou de que não me lembrava. Mas fiquei imediatamente agarrado a este poema, de que fiz a versão, e, que por acaso também incide sobre o tempo:

 
TESTAMENTO 

Tendo chegado o tempo em que
a penumbra já não me consola
e só me diminuem os seus diminutos presságios;

tendo eu chegado a este tempo, 

e dado que agora as borras do café

abrem de imediato, para mim,

as suas redondas bocas amargas; 

tendo eu chegado a este tempo, 

perdida já toda a esperança de 

alguma merecida promoção, e de 

observar, serenamente, o alastrar da sombra; 


e não possuindo mais do que este tempo, 


não possuindo, finalmente, mais

do que a minha memória das noites e 

a sua vibrante, imensa, delicadeza; 

 não tendo eu mais,
entre céu e terra que 

a minha memória, que este tempo, 

decido fazer o meu testamento. 

É este: 

deixo-vos 
o tempo, todo o tempo. 

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