Escrevi este poema:
Tapar todos os buracos de uma vida
Pode custar-nos a vida
E desligar-nos dos breves lampejos
De silêncio em que sob a laje a erva se empolga.
Voltar atrás, fazer entalhes
No remo ao invés de o meter na água,
Torna inúteis as sementes de cravinho
Enfiadas pela criança na fechadura do castelo
Escrevi este poema,
ou pelo menos esta pronunciação em forma de verso e hesito no modo de avaliá-lo.
Julgo que esta minha hesitação resume todas as minhas dúvidas sobre a sageza.
Adoro os sages, leio-os,
cito-os, trago-os no bolso, não vivo sem eles. Mas desejo profundamente estar aquém ou além, não na sageza.A sageza é muitas vezes apenas a forma redonda de acomodar o mundo num espaço de concordâncias e analogias que o tornam mais confortável. Aí a sageza funciona como uma espécie de plaina sobre as farpas e irregularidades da madeira – dá-nos uma âncora no meio do ciclone. Ora creio, que as âncoras só na água não são decoração, o que lhes acontece no ar, ou na terra, por exemplo.
Ou seja, desconfio que a sageza tenda a fazer da parte apostasia, evadindo-se então de encarar as partes fronteiriças que o real sempre desperta. Há um excesso de sentido na sageza, como se houvesse mais acessos do que limites.
Este poema por exemplo é redondo. Chegar a esta “sageza” – passe a soma de ignorâncias que isto supõe – levou anos, muito.
O que lhe é que lhe falta, para além da eventual carência de expressão poética? A exterioridade do mundo, o curto-cirtuito, uma ventania que abra um poro e escancare uma vista para algo maior – enigmático, inapreensível à minha auto-complacência.
Os orientais preveniam contra isto. Diziam, se encontrares Buda mata-o!, no sentido em que todo o seu itinerário era irreproduzível e o santo só traria consigo o risco da idolatria. Cada um está condenado a fazer a sua própria cartografia e um entrelaçamento próprio num padrão cujo objectivo não é repetir-se mas desenvolver-se. É pura perda de tempo imitar seja o que for, seja o Herberto, seja um patamar mínimo de competência que nos permita exigir uma resposta ou uma certa visão das coisas que nos distinga. Quando chegamos aqui atravessamos como um alfinete o tecido da sageza mas o fito é romper e não sossegar nesse pequeno âmbito que nos serve momentaneamente de patamar.
Há que esgaravatar
noutros lados e de estar permeável a que o imponderável penetre no poema e o
desaproprie do sentido que julgava encerrar.
Demos um exemplo de
um excelente poeta, Paulo José Miranda, que escreveu este poema:
Quantas pessoas que
nos pisam são precisas
Até que nos tornemos numa
Não somos nem as uvas nem o vinho
Somos o bem que fica
De todo o mal que nos quiseram
Até que nos tornemos numa
Não somos nem as uvas nem o vinho
Somos o bem que fica
De todo o mal que nos quiseram
Não há quem fique indiferente ao que o poema ensina. Este é o tipo de poema
que brotou de um ramo de sageza. E temos razão para gostar dele. Até porque nos
dá conforto: responde-nos. O que o poema não dá é novas perguntas. Vejamos
agora outro poema de Paulo José Miranda:
Um
cheiro a calças rasgadas
E mãos abrindo mais e mais portas ao vento
Quanto do tempo fica para trás
Naquela árvore frondosa e seca de verão
Onde nenhuma dor
Ou baga de medronho que te atormente
Talvez uma lancheira pequena à beira do leite barro do céuE mãos abrindo mais e mais portas ao vento
Quanto do tempo fica para trás
Naquela árvore frondosa e seca de verão
Onde nenhuma dor
Ou baga de medronho que te atormente
De outro modo que não
Somente um pombo com chumbos nas asas
E um ramo de crianças
Disputando por essa morte
Que não sabem ver
Explode então um som de campainha
Dedos lá fora no vidro da janela ver
Explode então um som de campainha
Dedos lá fora no vidro da janela
Este poema tem uma outra voltagem poética, o poema
dá a ver processos e não os tenta estabilizar. A própria sintaxe é dissonante. O
sentido organiza-se a partir de uma série de imagens que correm em paralelo,
sem se concluírem. Nós sentimos o que
o poema quer dizer mas este não prescinde das perguntas que ficam no ar, duma
ambivalência onde a alegria e o trágico, a finitude e a fuga se geminam sem se lacrarem. Este é o tipo de poema que “ensina” algo ao poeta que ele não
sabia de antemão, mas sem fixar o processo deixando-o apenas entrever como um
fragmento de vida. Dialogicamente. Como se na casa da sageza uma súbita ventania colocasse de
novo cá fora, ao relento toda a mobília… e é esta dinâmica que a sageza apenas
imita, pifiamente, mesmo que de forma elegante.
Aqui está o poeta de novo nu.
Por isso me parece o poema magnífico e muito superior
aos outros dois.
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