quarta-feira, 5 de junho de 2013

SAGEZA É FICARMOS DE SOBREAVISO

                                                                     Maria Zerobox


 
É incrível que se tenha esquecido e que de novo seja necessário repisar a lição dos antigos. Mas aí vai…

Quando Grabato Dias escrevia, no Lourenço Marques colonial, Guerrilha em Horas Extraordinárias:

 

«A mulherinha estava a pedir pega-me

naquele olhar de corna mansa, e então

fiz das tripas menores um coração

embrulhei-o em luxúria e num béguin

 

impetuoso e urgente, qual salame

perverso a mugir trinca-me glutão

abalei a voar no avião

rotativo daquele olhar. Eu chame-me

 

cão gravata se não valeu a pena!

Ó licor da vingança, ó bruta cena!

Tinha, enfim, sob a espora, sob a mão

 

soba espúrio, soba ex-puro a esposa

grata do chefe, e sob a esposa a musa

ingrata dum tinteiro da nação».

 

ou em Introdução a um pedido de asilo poli ético:

 

«Olho zanaga olhizaino e duro

labrusco joalheiro de praguedo

inventa o oligarca o medo. O medo

guarda o medo, e o escuro esconde o escuro.

 

Apreensão de apóstata prematuro

romeu repeso ansiando o ledo

quieto canto matutino, medo

urna do medo, eis-me (...) ».

 

está a ser muito mais subversivo que o chileno Angel Parra quando escreve em Canção nº3:

 

«Dirijo-me a si, General, que nasceu neste solo,

a si, legítimo filho da puta chileno.

 

A si que se orgulha de ser o Grande Carcereiro,

de ser o grande Traidor, traidor e embusteiro.

 

A si cujas mãos gotejam sangue humano,

a si que tem a vida e a alma condenadas.

 

Porque receia tanto o povo pelas ruas,

os seus passos, o seu ímpeto, o seu grito, o seu canto?

(...)»

 
Porquê? Parra limita-se a dar azo à sua indignação (justa) e serve-se da (imitação da) poesia para tal, enquanto que Grabato transforma a indignação em trabalho da linguagem, em subversão da sintaxe, algo que um tinteiro da nação (leia-se um burocrata, um funcionário colonial ou não), nunca compreenderá. Aliás, o “estilo” de Angel Parra é o de um “tinteiro da nação”, não difere do de um comunicado político.

No segundo poema Grabato vai aos próprios fundamentos da repressão, que se radica no estado normativa da língua, e vira-a do avesso. O miolo do poema está aqui: «O medo guarda o medo, e o escuro esconde o escuro», e alude à repressão (colonial), interiorizada pelo próprio carcereiro. Mas o poema fá-lo de uma forma que se torna socialmente irrecuperável, dado que “os tinteiros da nação” só entendem a linguagem mais chã e patinam como um peru sobre o gelo quando um poema se diz de outra maneira. 

E chegamos aqui ao fulcro do que faz dos poemas de Grabato grandes poemas e do de Angel Parra matéria volátil: o conteúdo do poema deste podia ser veiculado por distintos suportes, não precisava de ser num poema, enquanto os conteúdos de Grabato são indissociáveis da forma em que foram vazados, não existem fora deles.

Grabato não deixou o seu comprometimento como homem por mãos alheias, não podia era trair as exigências que a poesia convoca. Para Grabato uma ética da dicção substantiva uma estética da resistência e Parra fica-se pela metade. É esta a lição que um jovem “poeta” não pode esquecer.

O resto, se a época está de realismos ou de botijas na cama, e o nome do chefe da caravana que conduz momentaneamente homens, camelos e cães naquela rota pelo deserto, é indiferente. Até pelo motivo mais concreto: estamos sempre perdidos. Vem a morte e fará o seu trabalho. Mas convém não esmorecer e atravessar o deserto como a faúlha que não deixa que as brasas se apaguem.

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