quinta-feira, 26 de setembro de 2013

O LANÇAMENTO DE A MALDIÇÃO DE ONDINA EM LISBOA


                                                               

E lá aconteceu ontem o lançamento de A Maldição de Ondina. Eu li o texto em baixo, citando o José Teixeira Pimentel. O do António-Pedro Vasconcelos será publicado na imprensa. Foi uma festa porreira, onde reencontrei vários amigos. A todos eles grato, etc.



«O tempo tem destas coisas, desníveis e curvas de nível, e hoje apresentou-se chocho e pôs-me melancólico, pelo menos às sete da manhã deste dia 25, quando redigi este apontamento, sob o espectro da certeza de que preferia voltar atrás e ter sido guarda das pimentas d’el-rei dom Manuel de Portugal ou, em último recurso, ter sido amante da Debra Winger ou da Eva Mendes, a ter perdido dois anos com A Maldição de Ondina – um remédio que aliás nem me aliviou da gota.

Para já a relação teria sido muito mais rápida, por muito magnésio que eu pusesse nas mãos a enguia teria escapado. Depois a despedida seria de uma vez só, não era este enredo a conta-gotas que me faz sentir um amante póstumo.

Não creio que um amante póstumo tenha grande proveito.

Cansaços.

No dia em que fiz cinquenta e um – estava a acabar a Ondina -  tive uma estranha epifania: senti que quando fosse meia-noite me iria transformar numa abóbora. Uma coisa estapafúrdia para um cinquentão.

Comentei o meu desconforto com a minha filha mais nova, a Jade, e ela, do alto dos seus seis anos, respondeu-me:

Pai, uma abóbora não ressona.

E então compreendi que o meu desejo mais secreto aos 51 anos era não adormecer para não incomodar os outros com a minha apneia.

Ímpeto cristão, só me falta o baptismo.

Mas isso é na vida.

Os romances, pelo contrário devem ressonar, e fortemente - não transigir.

Incomodar pelos motivos que evocam, pela insónia em que colocam o leitor mesmo que não saiba porquê.

Como escreveu um amigo que leu a Maldição, uma frase que acho antológica: «Nunca gostei tanto de um livro de que discordasse tanto».

É este pacto que procuro traduzir na escrita, não o sentimento da fusão mas o do ligeiro incómodo que nos leva a prosseguir. Só neste intervalo entre uma impossível adesão ao que está a ser dito e o transe eléctrico da leitura é que pode acontecer algo novo, quando tudo, no dizer do velho Heraclito, «fica governado pelo relâmpago».

Não conheço outras leis para a escrita.

Nem para o tempo.

Por isso me fascinou este outro mistério que descobri esta noite na net e que me abysmou em reflexões que me tiraram o sono:

o pai de Rousseau, o Isaac Rousseau, foi relojoeiro num harém, em Constantinopla.

Relojoeiro num harém – eis tarefa para uma vida. E uma tarefa tão material, dado o tempo ser «a morte no trabalho» como dizia do cinema o Godard, como imensamente obscura.

Mas viu-se o pai de Rosseau obrigado a regressar a Genebra por insistência da mulher, Suzanne – de quem se dizia ser bonita e espirituosa a um ponto que teve um corrupio de pretendentes semelhante ao de Penélope -, e fez-lhe um último filho, para depois assistir ao sobressalto de vê-la falecer no parto de um – veja-se a ironia – bebé enfezado e doentio. O próprio Jean-Jacques.

Dizem os relatos que ambos ficaram nostálgicos, o bebé e o pai, e que dedicados ao culto da ausente Suzanne, se entregaram à leitura, devorando a grande colecção de romances que ela deixara – acumulada durante a estada de Isaac no harém oriental. AS coisas impensáveis a que podem levar as badanas de um harém.

Quando esgotaram esta biblioteca, bulímicos, concentraram-se na do avô materno, onde o muito jovem Rousseau virou, como se fossem líquidos, todas as páginas dos autores da sua época e os da antiguidade.

Mas suspeito que este jovem educado um pouco ao deus dará e com um pai que só lhe presta atenção por saudades da falecida, há-de ter chegado à adolescência e, numa noite de luar, talvez no esplendor da descoberta do seu corpo, embatido com o seu primeiro mistério metafísico: o que faz um relojoeiro num harém?

Qual é natureza exacta do seu trabalho? E qual é o verdadeiro marcador de tempo no serralho? E por fim, talvez a mais vertiginosa das perguntas: um relojoeiro num harém não se sente afogar numa espécie de infinito, de coalho que impede qualquer regularidade na medida?

Que podia o embaralhado Rousseau imaginar, para se safar a tal vertigem, senão «um bom selvagem», uma pulsão-em-flor que escape ao controle dos ritos e das regras “civilizacionais” – que permita, enfim, evadir-se de tudo o que dava sentido ao cumprimento das horas e à necessidade de um relojoeiro.

Pressinto que Jean-Jacques Rousseau, de repente, contra o pai, aspirou à hipótese de no futuro, e unilateralmente, vir a ser amante da Debra Winger ou da Eva Mendes, e nunca por nunca relojoeiro.

É aqui que nos encontramos e que eu deslindo outro princípio para a arte: encontrar mais que foi perdido (Elias Canetti), como só pode acontecer em Eros.

Mas enquanto ninguém me manda o contacto da Eva Mendes, só me resta escrever outro libro, para me salvar desta dupla maldição.

Por isso, meus caros, até mais logo.«

 







sábado, 21 de setembro de 2013

REVISITAÇÃO DE HELDER MACEDO & UM PROBLEMA

 O problema com o Mal é que sob a sua filigrana já lá não respira ninguém, um outro. Não que o não “pareça”, ostensivo, importuno, omnipresente. Mas os seus modelos estão de tal forma saturados que já não trazem o pavor que os tornava indescritíveis.
Já não consentimos imaginar o Mal para além do que nos é oferecido. Estamos reféns das imagens que os seus modelos reproduzem. Ei-los mensuráveis, colados como selos às cartas endereçadas ao bem-que-nos-pariu.
E eis-nos abarrotados, até ao infinito, de cabidela, de vampiros, de espelhos que se vingam retroactivamente, de ogres & aliens, de democratas que mentem ruidosamente e de tiranos de viscosas mentes que florescem sob o bolor dos Hannibals desta vida, de putaria baixa & escarninha.
Como insistir na perfídia que já só se repete, extenuada, e já não afigura ser mais do que uma sobra?
Ser sacana, maldoso, ímpio, perverso, f. da p. qb, enrabar os anjos, engessados ou não, que intensidades traz agora, quando os massacres se sucedem indiferentes, em directo, e em Chicago escalpar bebés é o divertimento?
Lady Macbeth boceja e nós, depois de todo o bem cariado, chegámos ao mal sem sombra.
Para abusar de dois versos de Helder Macedo, o mal “telefona-me às vezes depois da meia-noite/quando o silêncio raspa o vidro da janela” – e, foda-se, mal damos por esse “penetra” na nossa festa.
E suspeito que depois da “naturalização” do mal começaremos a perceber que o silêncio foi perfurado. 
Quanto tempo precisaremos para compreender que perfurado não quer dizer perfumado?
“E eu nem sequer estarei aqui a dar por isso/ por termos ficado todos tão parecidos” – volta a escrever o Helder Macedo, um poeta absolutamente a redescobrir
e mais uma voz que confirma a minha intuição de que há décadas que confundimos a literatura com o turismo de massas, cabendo-nos a obrigação de corrigir o tiro.
 
 
Ladrilhos emprestados a “POEMAS NOVOS E VELHOS” de Helder Macedo, Presença, 2011, livro a que voltarei:
 
 
De VIAGEM DE INVERNO
 
2
Um salto de raposa sobre a estrada
último sol à beira da fronteira.
depois somente a sombra
duma luz diurna
a câmara dos ecos
e círculos de corvos sobre a neve
(…)
 
3
Na encruzilhada
vi-me reunido
restituído ao corpo que previra
despedido
na bifurcada ausência
da estrada sem regresso
ou transgredido
na transparência nua
da pele em que te teço
ou reconheço
nessa rasgada lua
nesse mar vão de sangue reflectido.
 
9
(…)
Mas os olhos que eu vi ainda eram negros
da cor da primavera.
 
10
A esquina estava lá
e a árvore prevista
mas não eu.
Falto-me?
Faltei-me
mas nem sempre é necessário não faltar.
Basta o simulacro de árvore na esquina
basta a avenida sem estrada onde passei
basta ouvir-me o silêncio em cada passo.
 
18
O laranjal coberto de limões
 
no corpo suculento da memória
 
(…)
 
De O LAGO BLOQUEADO
 
Não há mistérios
há corpos
com saídas e entradas
que se encontram
e articulam o serem divididos
 
não há não há mistério
 
e só assim conheço a minha imagem
onde mais me desconheço
no teu corpo
minha imagem verdadeira
como quis sempre não saber
 
há corpos
corpos apenas que não são embrulhos
de alma
nem morte redimida pela vida
 
por isso meu amor vejo-me em ti
porque te desconheço
e também te vejo em mim
 
mas não falo já de mim nem para ti
porque não és o corpo
que reflicto
à tua semelhança
que no entanto é tudo quanto sou
 
sossega meu amor
não há mistério
meu amor
meu excesso frio de paixão
há corpos
há corpos que se encontram
e se sondam
até que os corpos parem de morrer.
 
 
De O SETE
 
 
(…)
pra cama pra cama
e basta de prosa
quem fica de fora
não sofre nem goza
 
e arrunfa tafunfa
menina cachuncha
e trica larica
na pita catita
 
(…)

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

HARPO MARX NA JAULA DOS LEÕES


Revistas as provas finais do meu livro «Harpo Marx na Jaula do Leão», que sairá ilustrada com cinco belíssimos desenhos do Manuel San Payo.
É um livro de poesia que não sei classificar e que, pressinto, dividirá os leitores, tão à míngua de um lirismo de que, neste livro, me sinto algo arredado, ainda que termine com um longo poema de amor; o qual os que tendem a querer catar emoções nos versos acharão frio.
Um livro algo conceptual, em que o satírico alterna com alguns momentos de uma melancolia expansiva e em que o discursivo e o narrativo se sucedem, aqui e ali, armadilhados por elipses.
Será o meu segundo livro depois dos 50, e julgo que com  o anterior«Não se Emenda, a Chuva», constituirá o momento mais maduro da minha produção. Neles abandonei os malabarismos da metáfora e da linguagem, numa mescla de construção e coloquialidade.
Aqui deixo o poema de entrada do ciclo que dá nome ao livro:


HARPO MARX NA JAULA DO LEÃO
                                                     para o João Paulo Cotrim
1

Lembro-me duma jaula abelhuda
que não desgruda do desassossego de uma veia
e de Harpo Marx lá dentro, com um leão
vagamente adormecido —
a buzina, emaranhada na juba,
muda — e dele
com o indicador nos pedir «shiu».

Ou talvez confunda
com outra jaula num comboio
e outra indubitável fera fulva
em Some Like it Hot , de Billy Wilder.
O sniper que me ajusta a mira da memória
é que não me deixa mentir:
era felino o rosto de Harpo.

Glória de um homem talhado
para reinar, ainda que só
entre crisântemos, harpas e mimos,
tendo por ministros particulares
os poucos anjos
que – às primeiras, roazes, feiras
do Verão –, inebriados
pelo vento de nortada que tatua
o desejo nos pomares, não se evadem.

E ainda que vasto seja o sobrevoo
(a imaginação dos adultos sempre pinga),
nunca será o desfecho previsível,
se, em troca de uma língua-de-gato,
em criança nos inquirem
                                       o que
queres ser quando fores grande…
por isso, sem aparato, foi esse
o meu segredo
mais bem guardado na inflamável
fortaleza das amígdalas.

Queixava-se o Borges, eu que tantos
fui não fui o patusco que enxugou
na sua ínsua maledetta o profuso estuário
da Ava Gardner (não era esta a Eva dele,
mas a que mais me aflui à infância
do desejo): retórica pura — 
em matéria de sexo, só os toureiros
e as condessas descalças sabem da poda.

Eu queria ter sido simplesmente
o Harpo Marx das pontas
que ficaram por montar, a sua mudez
presciente, posto serem as palavras
barcos que partem, encadeados
por desavisados destinos.


E, asseguro-vos, a vergonha
que tinha valia por doze sarapitolas,
enchia oito frascos de compota.

 

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

ENTREVISTA A UM POMBO CORREIO SOBRE O MUNDO MINERAL

Em 1012 o Diogo Vaz Pinto e a Inês Dias dirigiram-me uma série de perguntas sobre “poesia e crítica” – perdi o enunciado que me enviaram – para um volume que incidiria precisamente sobre a relação entre esses dois patamares do universo da escrita, mas cuja publicação se gorou. Aqui ficam as minhas respostas.
1
Eu apareci cedo mas amadureci tarde, o que condicionou o modo como fui lido.
Fui para muitos um “champignon de route” do Al Berto, editado por ele em 79, e quando publiquei o meu primeiro livro “sério”, em 97, o Al Berto tinha morrido.
Pelo meio, andei pelos jornais, assisti a muitas mudanças, e já toda a gente estava farta do meu nome quando me meti verdadeiramente à estrada.
Daí suspeitar que poucos conhecem realmente o que escrevi. Acresça-se a isto o facto da maioria dos meus livros serem literalmente invisíveis (tenho que ir à bruxa).
Antes de 97 não conheci qualquer “fortunata crítica” e era justo. Mas tinha feito amigos: a Maria Velho da Costa, com quem escrevi vários filmes, o Herberto Helder, o António Barahona, o Grabato Dias, o Fernando Assis Pacheco, o Hélder Moura Pereira (eu andei sempre com os mais velhos), o Virgílio Martinho, entre outros.
O eco deles fez-me insistir na minha «poesia esquisita» (FPA). Só tinha que robustecer. Engordei então 20 quilos e passei a ter uma voz pletórica como a do Orson Welles (brinco).
Quando o António Guerreiro, a Maria João Cantinho, o João Barrento, o Urbano Tavares Rodrigues, o Eduardo Prado Coelho, escreveram sobre mim aí eu já tinha encetado o meu erro, pelo que não tiveram qualquer influência.
2
Só um best-seller pode mensurar os seus efeitos. Além disso vivo fora, literalmente, e nunca estive ligado a grupos ou ao empenho de gerações. O meu percurso tem sido solitário e dividido as opiniões, e já é tarde para me preocupar com isso. Aliás, neste momento há quem goste mais de mim como prosador do que como poeta. Why not?
3
Andei sempre levemente desconectado. Porque só acredito em coisas decantadas. Mas, a partir de 2005 e do livro Piripiri Suite, escrito já em Moçambique, sob o choque de uma erosão sobre homens, paisagens e ideias, como nunca imaginara existir, algo me roeu o luxo das metáforas, e tornou-me mais descritivo, aproximando-me de um certo modo mais próximo ao da geração de 90.
Mas continuo a pensar que preferia ter sido Michaux ou Ted Hughes a Phillip Larkin.
Neste momento, os poetas a que dedico a minha atenção integral são dois indianos: Lokenath Bhattacharya e Sujata Bhatt, um marroquino Abdelatif Laâbi, e um belga flamengo, Hugo Claus.
E acho que, no Brasil, se está a publicar excelente poesia na net. Já deram conta de Maira Parula?
4
Comentar a poesia exige um despojamento descoroçoador. É mais fácil arranjar uma grelha de conceitos e dois ou três tutores, que configurem uma sensibilidade, e, em nome de uma pertinência auto-legitimadora, aplicá-la. Fica meia costeleta fora do prato, nesta técnica de Procrustes, e nota-se um tal cuidado em «não caluniar as aparências» que fica por responder a questão central, a que Sócrates coloca a Fedro: se a verdade viesse de um carvalho, de uma pedra, nós aceitávamo-la?
Terá a poesia pouco a ver com a questão da verdade? Talvez, mas, paradoxalmente, não pode deixar de atender a esta pergunta.
Penso que, na “demanda” crítica, renunciamos demais aos acontecimentos e às singularidades em nome dos afectos, do conforto, da chantagem da “camaradagem”. Raras vezes a crítica não confirma a derrota do humano. Portanto, sim, a crítica é parcial, tendenciosa, protege uns em detrimento de outros por razões que não se prendem à qualidade do texto e, sendo difícil exigir que não seja assim – pois, perguntava Shakespeare, podem com sangue ser os homens diferentes? -, convém que alguma lucidez vá periodicamente corrigindo a mão.
5
O último serviço de pombos-correios que existia no mundo fechou as portas em 2001, na região de Orissa, na Índia. Não sei se ganhámos, se não fomos amputados de um certo tipo de imaginário. O mesmo se coloca com a música, gostar só de música pop, ou rock, e não ouvir música clássica ou erudita, não é uma mera questão de gosto mas de amputação de amplitudes na sensibilidade musical. Nas edições, neste momento, como em tudo, tende-se para a estereotipia – não é só a rejeição da poesia mas também a de um determinado tipo de prosa que se verifica. Hoje o Rabelais, o Sterne ou o Machado de Assis não teriam editores, são excessivamente digressivos e tanto vocabulário ofende a paciência do “leitor médio”. Cabe-nos reagir.   
6     
Estamos submersos numa saturada permuta com “o real” e algum excesso de cinismo e de conformismo recheou de “aporias” o poema. Do que pode resultar que “o grau de realidade” poética se meça pelo grau de trivialidade, de tédio, e vice-versa.
Nestes moldes a poesia servirá pouco o agir humano.
À melancolia, por exemplo, há ainda quem a aguente?
Tão sedutor como improfícuo, o lado de grande bazófia desconstrutora em Wittgenstein que contaminou tudo.
E vale ainda a poesia? Enquanto for capaz de trazer novas inquirições julgo que terá um papel social inigualável pois a poesia para mim é como a fotografia para o Bazin: algo que terá talvez mais a ver com o mundo mineral do que com a cultura humana. E aquilo que assim nos interpela nunca se despede.