sexta-feira, 15 de novembro de 2013

AS ESTRELAS DE SÍLVIA BRAGANÇA

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A Silvia Bragança, uma amiga pintora de 75 anos de idade e com um percurso extenso e multifacetado, inaugurou ontem uma exposição na Fortaleza, em Maputo. Fiz para o catálogo o texto que vai em baixo e no momento li o texto que pinga a seguir. A exposição vai continuar, na Fortaleza, durante o próximo mês.  

Como transmite o anjo? As formas de comunicação angélica distinguem-se dos modos de ver e de aprender sensíveis, e o anjo testemunha o mistério na sua forma mistérica, transmite o invisível enquanto invisível, não o atraiçoa com os sentidos.

O anjo actua como um espelho, certamente, mas da pureza do silêncio e do mistério de Deus.

E mesmo que o homem se encontre num estado de não-dualidade, num estado de enosis (de fusão entre o sujeito e o objecto), a contemplação da Verdade, impossível de alcançar discursivamente, segundo o místico Angelus Silesius, só se produz por contágio: «Deus habita uma luz a que nenhuma estrada conduz; quem não se converte em luz, não o vê em toda a eternidade». O que o poeta Holderlin corroborou ao escrever: «creem no divino/ só aqueles que o são».

O que tem isto a ver com a exposição que Sílvia Bragança nos apresenta? Tudo, e não na acepção relativista de tudo reconduzir a tudo, mas no sentido em que existe nesta pintura um entrelaçamento entre as realidades conscientes e o inconsciente, como acontece na respiração. Na nossa e na respiração das Estrelas, nos seus pulsares, que aqui se representam - numa radiografia da luz.

 
betelgueuse  2
 
 
Para Sílvia Bragança pintar e pensar são uma e a mesma coisa. Ao ponto de ter havido uma fase da sua obra plástica em que as linhas se confundiam com a experiência saturada das letras e o desenho com a cristalização das frases. Por outro lado, Silvia sofre da mesma confiança que fazia Cézanne declarar que a cor é o «lugar onde o nosso cérebro e o universo se reúnem».
 
O que talvez falte à pintora e pedagoga Sílvia Bragança, para se entender de imediato a mensagem que lhe motivou estas imagens, é uma memória panorâmica do seu trajecto nas artes, para que se veja que esta criadora, que se renovou sempre nas formas, nos materiais e na abordagem dos seus temas, tem perseguido dois temas fundamentais: o da Solidariedade - que se realiza na liberdade e na paz e a levou a quadros e desenhos de denúncia (sobretudo da guerra) -, e o do Sagrado, visível em muitas representações explícitas da Virgem e do Menino, que realizou ao longo da sua vida (- e que aliás lhe valeram o repúdio numa exposição em Moçambique, numa história tão triste como anedótica, como se as revoluções estéticas fossem apenas rupturas e não também movimentos de translação que acabam por nos recolocar no exacto ponto de partida: i.é, face à história da pintura e das suas variações) e noutras obras abstractas em que materiais (rodas, engrenagens ou bandas de metal coladas sobre a tela) heterogéneos buscavam harmonizar-se e dispor-se segundo um princípio de atracção das cores e dos materiais que visava duplicar um vínculo de re-ligação perene: as leis do Amor.

Ora, o Amor é uma das portas de entrada do Sagrado.

Sílvia Bragança nunca teve receio de experimentar, formas e formatos, tecnologias, materiais (rendas, tecidos, transparências, engrenagens, tela, imagens digitais, etc.) e processos, nem de misturar as iconologias ocidentais com as indianas, e até combinou as paletas de cores das diversas tradições. Fê-lo sempre em confluência, e até no dever ético de reconduzir a pobreza à expressão. Volta a fazê-lo nestas quase duas dezenas de imagens que têm por tema as Estrelas, num gesto visionário que o poeta Lucrécio aprovaria.

 
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Diga-se já que esta é uma pintura ecológica posto que visa relembrar-nos que o homem participa de duas realidades - a da vida material e a do macrocosmos (a "materialidade espiritual", diluída a contradição, que nos catapulta para o Sagrado) -, e que não passa, como fugaz entidade, de um elo. Face aos fantasmas da violência – a fome, a guerra, a ganância, o egoísmo, a injustiça - que o homem, por soberba, provoca na sua vida social, Sílvia, quebrando definitivamente nesta pintura "o espelho da realidade" que era a pintura figurativa, coloca-nos diante do inapreensível, da dimensão cósmica, devolve-nos à nossa pequenez. Eis uma forma diferente de fazer política que agradaria a Roberto Matta, o pintor chileno de grande empenho revolucionário que em vez de pintar retratos dos líderes políticos se dedicava a figurar barrocas visões do cosmos e da quarta dimensão.
 
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De origem indiana, cultura que cada vez cava mais fundo nela, Silvia projecta-nos no "Tu és ISSO" da Chandogya Upanishad, simbolizando esse Isso a plena exterioridade do que nos conforma e é, simultaneamente, tanto o nosso contexto como o que, interiormente, nos constitui: por ex., as Estrelas e a sua luz, "exteriores" a nós e essenciais à nossa matriz mais molecular.

Com esta particular visão de algumas estrelas que constelam o nosso céu, físico ou imaginário (Betelgueuse, Sol, Arcturus, Sirius, Pollux, Antares, entre outras) Sílvia Bragança dá-nos um suporte para nos ausentarmos de nós mesmos, até à fissão dos nós mais entranhados do nosso ego, numa contemplação que nos pode ajudar a desembaraçar o peso do vivido; pois como sabia Nietzsche afirmar não é carregar a vida com o peso dos valores superiores, mesmo os heróicos, mas sim criar valores novos.

Contemplar as estrelas, além de nos penetrar de humildade, ajuda-nos a esvaziar a sombra da sua infinidade de ecos e aproxima-nos do silêncio.

Nestes quadros a beleza – categoria cara à pintora – é desatada (é o termo) pela nossa sensibilização aos sinais de uma coerência orgânica, formal, que nos conecta a uma vibração "óptica" particular e apaziguadora. Mais do que ver os quadros simplesmente estas imagens, somos submetidos à sua influência, creio.

Concreções orgânicas, sedimentos de luz, feixes e fluidos coloridos com texturas que por vezes tomam grumos e se irisam em torvelinhos, estes quadros convidam-nos a olhar para lá do que é aparente, e a procurar compreender como as cores latejam, interagem e se relacionam em superfícies luminosas onde os nossos fantasmas já não cabem. Como se fossem cunhagens originais de antes do nosso mundo referencial – o que talvez nos torne o inferno habitável.
 

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Olhar para estas estrelas talvez nos perca, talvez nos salve. Como acontecia com Kandinsky e Mondrian, que também não temiam a palavra ascese.

Gostaria de acabar citando um belíssimo trecho do filósofo Rafael Argullol: «A ideia mais audaz que pode conceber-se é a de um infinito que, enamorado da nossa vida, só através desta tenha a sua razão de ser.»

Por isso me parecem tão humanas estas estrelas de Sílvia Bragança. Deixe-se contaminar.



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Pouco sei sobre a astronomia africana e por isso não me vou pôr a inventar, mas sei que, ao contrário do que muita gente julga, nas sociedades axiais, isto é, nas diferentes sociedades tradicionais – como a hindu, a chinesa, a africana ou a cristã medieval -, há muitos pontos de contacto sobre imensas matérias. E por isso trago em meu socorro o Dante, que foi talvez o maior expoente do que seja o pensamento tradicional na Europa, e que no Canto I, depois de ter vislumbrado o Inferno, escreveu:

«Então o medo acalmou um pouco –
O tempo de desânimo, passado na grande angústia
Que no lago do coração ainda durava…»

Este lago no coração é o que nos importa para aqui.

Acreditavam muitos naquele tempo que existia no coração uma cavidade – que o poeta chamava lago del cor – onde habitava o espírito vital. Dessa cavidade partia o sangue e o calor que o tal espírito vital derramava por todo o corpo. No coração estavam assim sediados os sustos, as paixões, os temores, etc. Não no coração por inteiro mas especialmente nesse lago del cor.

Cabe lembrar que uma das características dos lagos é serem um espelho do firmamento, das estrelas. Ou seja, numa perspectiva que hoje chamaríamos de holística, os astros estavam umbilicalmente ligados ao destino e aos acidentes sofridos pelos humanos pelo que, como se diz na Tábua de Trismegisto, um das bíblias da alquimia, o que está em cima, ou o macrocosmos, reflectia-se no que estava em baixo, no microcosmos.

Tudo isto pareceria um pouco esotérico para uma exposição de pintura se a pintora não fosse a Sílvia Bragança, que tem vindo a firmar-se numa busca espiritual em que cada elemento pictórico exige ser re-significado na constelação a que pertence. Não esqueçamos que uma das suas últimas exposições tentava associar a dinâmica da relação entre as cores às ocultas leis da matemática. Fê-lo intuitivamente, mas isso apenas ilustrava a sua demanda de uma verdade para a pintura.

Dizemos verdade para a pintura e não para a representação – pois tendo sido ela uma pintora que alternou sempre entre vertentes de abstração e outras neo-figurativas, exactamente nesta exposição deixa-nos a patinar na perplexidade, sem a muleta da representação de um modelo. Esta pintura não representa nada que nos seja conhecido previamente, antes apresenta, como se fosse uma substância nutritiva, pautas de relação cromática que cabe a cada um de nós aceitar ou não, mas que são dinâmicas e nos mexem com a sensibilidade.

São estrelas, diz a sua autora, ou os modos subjectivos como ela as vê e sente e nos transmite, na secreta esperança de que estas figuras – com os seus arabescos, bandas de cor, pulsações e traços - sejam correias de transmissão para uma re-ligação com a luz e o afecto universal.

Isto é, esta pintura não nos deixa indiferentes, convida-nos a aceitar ou a rejeitá-la, mas sobretudo, ao prescindir das categorias que normalmente relacionamos com a arte: a beleza, a composição, as simetrias da empatia, as marcas de reconhecimento, creio que nos desloca para uma zona onde a dimensão do mistério volta a fazer sentido – esta é uma estética da comunhão, onde se desenha outro tipo de harmonias, orgânicas, as quais se articulam não como como objectos definitivos, acabados, mas antes como um lugar de passagem.

E precisamente por isso, do ponto de vista estético, esta é uma aposta de risco, sendo que, para mim, sobretudo quando o risco se ancora num percurso com uma dimensão humana e expressiva inegáveis, onde há empenho no risco ocasiona-se a arte porque esta nos abre novas janelas para meandros da percepção e da sensibilidade que ainda não estavam iluminados.

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