sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

POEMA DE NATAL PARA O PAULO MIRANDA E O COTRIM

                                                           miró, cão latindo para a lua


Sente-se de repente a meio duma frase
que estamos em convalescença
e um bosque avança no eco da casa

em sete divisões que a luz decompõe
como se fossem as serrilhas deste selo de Veneza
que martela no coração fatigado uma viagem por fazer

a viagem por fazer,
a vida por achar num caminho desimpedido
de chaminés de mármore preto.

Podia ser verão a meio desta linha
que a vida transformou numa longa carta
esquecida na cómoda que foi a leilão.

Somewhere, o lento processo de decomposição
do outro, tão inábil em admitir
que o lugar dos bolsos era o púbere desejo do mar,

avança, inexorável, mas paralelo à exaltação
quase imperceptível com que o túmulo
mudado em balaustrada sobre a desova dos salmões

se cala para não dispersar a vida -
porque só é irremediável a manhã
em que não fizemos amor.

A meio deste instante recebi um mail
a falar-me duma sombrinha chinesa
esquecida no miolo dum passaporte

roubado e que reapareceu em Curibita,
segundo o informe que recebi da polícia local.
Foi o inédito da sombrinha, assegura

o comandante Matias que os impeliu
a procurar-me num reenvio transatlântico.
Milagres para um gentio

que ao contrário dos reis magos nunca pernoitou
no Hotel de La Vallée, onde, dizem
que uma estrela faz cirurgia a um planeta

já descrente de que haja rapazes de olhos cor-de-rosa.
Por isso me parece a vida mais simples
do que antes: já não sou o guarda da prisão

e a alegria começa no puré de castanha
e nos salpicos de sal a meio de um umbigo
donde despontam petroleiros e uma asa

do mamilo que desenha um fio de sangue
na nossa boca. E já não passa a horas fixas
o comboio mas sei que ele passa

e me transporta aos jardins submarinos
do Niassa e aos rigores da criança que nos vê,
bêbados, e cruelmente mijados de compaixão.

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