sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O COELHO EM VISITA


Nem sei se vos diga se vos conte – o melhor é fazer figas e esperar que o tempo passe, suado como  o dorso do cavalo que viu o d. José ao fundo. Mas a vidinha está assim, a época está assim: conformada.
Com um braço inerte e caído, enquanto o outro punheteia o espectro das utopias que faliram. Daí que a estupidez avance e a sua irrelevância também.
O fito era o homenagear o Mandela e os poderes da terra mandaram fazer uma estátua de bronze de nove metros em dois dias. E ainda por cima, prepotentes, avisaram os autores que não a podiam assinar.
Eles comeram e calaram, que o dinheirinho faz falta a todos. Fizeram um mamarracho que só tem equivalente no naufrágio de Trafalgar.
E como a sua vaidade ficou chamuscada com a impossibilidade de assinar mediocridade tão distinta, resolveram vingar-se. Ou antes, ser traquinas. E esculpiram um coelho no pavilhão da orelha esquerda (ou direita) da estátua.



Que só muitos dias depois da inauguração foi descoberto. A oito metros e meio de altura. Suponho que algum miúdo com mais humor deixou no sopé da estátua um saco com cenouras. Ou talvez porque um desses detectives que com pundonor fotografam os adúlteros em linguados e ademanes deu conta de que num canto obscuro do enquadramento havia um coelho em visita.
O certo é que o intruso foi descoberto e agora as autoridades estão em brasa e querem-no dali para fora. Vai um charivari lá para as bandas de Boers e Zulus, Lda.
O coelho manhoso (como o das fábulas africanas, embora aqui seja mais a lebre enquanto o putativo roedor da polémica infiltrada na orelha do ícone tenha um ar mais doméstico e terno, de coelho)... – é até um quiduxo!
Que falta de tomatada!
Compare-se a coisa com o herético caracol, na Anunciação de Francesco del Cossa (1470-72). É um pormenor arrepiante, inesperado, espetado na carne do sagrado como uma verruga . O anjo anuncia a Maria Aquilo que não autoriza diferimento – a sua prenhez abençoada – e que supostamente mudará o mundo, e indiferente a esta ordem dee uma Necessidade Inelutável o caracol avança, absorto na sua baba terrena, nas tintas para a arquitectura da conveniência. É um argueiro no olho beato, que só vê coisinha santa.


Nesta altura em que as ofensas a Deus eram tomadas a sério, este era realmente um atrevimento do artista, uma blasfémia.
Agora, os traquinas fazem coelhos.

Morremos do amontoado da irrelevância que nos capa. Mas, ah!, como somos paródicos!

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