quinta-feira, 29 de maio de 2014

SOLTE-SE O ROCK PRÉ-SOCRÁTICO: O RETORNO DE PAULO JOSÉ MIRANDA



Amanhã, na Abysmo – Rua da Horta Seca, 40, r/c, ao Camões, pelas 19h -  vai ocorrer o lançamento do livro de poesia do Paulo José Miranda, Exercícios de Humano, com apresentação do esteta e filósofo António Castro Caeiro.
Infelizmente não estarei para reeditar os nossos almoços intermináveis no Palmeiras, da Baixa, onde sob a ventilação das ventoinhas no tecto e a cavalo em copos de três discutíamos poesia e soluções para o mundo como se partíssemos em gomos uma laranja. E ainda não adivinhávamos que esses parcos sinais «tropicalistas» nos ejectariam, aos dois, para lados opostos dos trópicos.
A poesia do Paulo é uma poesia que faz falta, e por isso é vital não faltar amanhã. Faz falta por três motivos essenciais:
- é uma poesia elemental, pré-socrática, em que o poeta sem pudor dialoga com as forças e as energias do mundo, embora não do ponto de vista do sujeito mas da reminiscência;
- há nela uma pulsão elegíaca mas que não disfarça ou teme enfrentar nem as aporias nem o Mal, devolvendo a complexidade aos «exercícios de humano» (é este assumir das antinomias que a torna tão urgente e intemporal);
- terceiro, o Paulo José Miranda é um dos poucos poetas de hoje que não se contenta em fruir, e para quem a literatura é a encarnação de um pensamento, de uma sensibilidade, e uma interpretação do mundo, e não um mero «jogo de linguagem».
Gostava de desenvolver tudo isto mas a minha mão fracturada não me deixa agir com o fôlego que ele merecia.
Fica o poema que lhe dedico e que ontem consegui escrever no escasso intervalo da minha inactividade forçada e o grande abraço que lhe dirijo, mais à Aurea, ao Cotrim, o editor que o resgasta ao fim de oito anos de “exílio” e ao Caeiro, por, com a força da fidelidade, não refrear o entusiasmo.

   
ELEGIA PARA O PAULO JOSÉ MIRANDA,
DO SEU AMIGO EM FRACTURA

A alegria de conseguir escrever
                                     em letras minúsculas
que não pesem na mão
como pequenos ladrilhos
que a luz atravessa
                               obliquamente
mas deixando entrever o licorne
- numa incidência que se presta
                               ao diálogo,
mais do que à representação –,

a surpresa de poder
                            escrever sem dor,
           só mudando de escala,
e com a leveza inicial do tigre
que tropeça em todas as sílabas
        que encontra,
cego ainda ao ensimesmado,
solitário,
              engalfinhamento carnívoro,
faz-me voltar ao verso.

Nós sabemos que não há inocência
                mas é sobre a sua pressão
indefraudável
que acabamos por acatar «a esperança
de que bons e não maus espíritos
            nos tenham como instrumento».
            Não mais do que isto
é a depuração do estilo,
o lento armistício
            de que somos o sinal.

Suportar o mal, entronizá-lo
                          como estrume,
para extraviá-lo num máximo de pétalas
de heliotrópios por metro quadrado
                          de retinas,
eis a epifania que fazemos por merecer,
                - passar entre a luz e o vidro
sem deixar resíduos
                                 tóxicos.

O resto é o simultâneo
que nos brota da fronte como raízes
onde toda a veia se desanda
                              e o estio respira à chuva.
E que o desejo nos enterre
nessa terra inalcançável
que o glaciar
                     do falo escalda.


(os versos entre « » são de Czeslaw Milosz) 



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