quinta-feira, 12 de junho de 2014

ANTES QUE TE ESQUEÇAS NÃO ESQUEÇAS/ CARTA A HERBERTO HELDER


Antes que te esqueças não esqueças
De me ensinar a deixar de explorar os mortos         
Por macios que nos pareçam,
Ou a minha compaixão os amotine.

E antes a usar a minha própria queda
Emprestando-lhe a asa de Durer
Se no perímetro a dicção não se me ajustar
À ocasião, ao trôpego acto

De capinar o coração,
Até que liberto de espelhos e fantasmas
Possa rufar sem eco. Sim, sê
Tu o meu Marteau sans Maitre,

Ou sei lá o que digo, sê a sede
Na fonte que nos sangra
E afinca ainda o dente à sombra,
Dispensando o baixo custo da métrica estrita,

Que para nós a morte é o luxo
Último de nos negarmos
A fazer da memória oração
Para sentirmos até à derradeira batida

Como ritmamos o mistério
Do espaço – o único vitral
Que nos situou e visitámos,
Lerdos e aflitos como a corola

Que abriu na mais despenhada noite,
Pelo ilimitado isolamento
Em que culmina a alegria.
Antes que te esqueças não esqueças

De me avisar que o céu também se enruga
E que o gesso de muitas décadas
De avícola existência
Às vezes degenera em alarido de megeras,

Em vaidade megalocéfala, engodada
Pela promessa de que em letra de Mefistóteles
Se faça ninho. Antes que te esqueças
Não esqueças de me colocar diante dos olhos

Os grampos, as pinças, o bisturi com que se maneja
O vazio sob a pele e os astros nas veias,
Essas amálgamas de escória e fantasmas
Que antecipadamente cozinham no sangue

O vil perdão da nossa morte. Afundar-se
Na própria profecia é o deslustre
Do diamante desfeito em carvão de coque
Ou o mar que respira na incandescente salamandra?

Antes que te esqueças não esqueças
De me penetrar com o teu turbilhão
Até que o nome fie mais pus e sujo
De luz, renhidamente, me aperte a garganta.



12 Junho de 2014

1 comentário:

  1. Sempre antes que me ponho a cama, insta-me a voz sonâmbula da sua poesia visitar.

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