segunda-feira, 14 de julho de 2014

BREVE REFLEXÃO SOBRE PORTUGAL


O poema com que fechei a escrita de As Feridas de Heitor, que sairá em fins de Outubro pela Abysmo, em Lisboa e no Brasil. É um 2 em 1, um livro de amor que tem umas guinadas satíricas (ó pecaminosa mistura de géneros!), pelo que sai barato. Queiram começar a reservar, pois a edição será unicamente de 3000 exemplares, juro eu. Ouviste João Paulo Cotrim?
A foto é de Alice W R e chama-se Alone Together


82             para o Helder Macedo

Faltará aqui uma breve reflexão sobre Portugal,
            O que se ilumina nos trilhos da floresta,
       se andamos aos cogumelos,
sob um mavioso aguaceiro,
             e ouvimos a respiração do lobo
             nas nossas costas, o seu rilhar.
No país dos Braganças - a dinastia
que converteu um país à fotossíntese,
             ao exangue ornamento –
        adoptou-se
a sabedoria de Mister Chance
sobre pés de couve e regos d’água
         e diante do engendramento de tais valores
(estulta nação que até nas heresias
         poupa) ficam poucos
sentimentos disponíveis.

Que bela tença, meu Capitão!

Menor a de Pessoa, que foi magno
a fertilizar a pátria ingrata,
     a mesma que, perdida do seu desígnio,
     no presente escolta o vento.
Arfa. Ofereço-lhe as duas cenouras
      que trago comigo? Pelo menos
raiava-lhe nos olhos outro brilho!

Teve em tempos Portugal
               mais forma que privação,
               mas agora é um casebre
       desconjuntado como o pêlo encravado
   a quem cerceia
a linha picotada entre
       “desanimado” e “inanimado”;
ei-lo reduzido a um mapa,
desprovido de joelhos, de salsa, de lábios,
e que mataria de riso
             o Buster Keaton;
hematoma que tirita
      com a miúfa de extravasar-se,  
e que então se faz fútil, quotidiano, tributável,
             grossa
            lágrima
           suspensa
              num
             doce
        auto-engano
(curvada a fronte ao realismo)
- e vão três poetas de enfiada,
      que é a última Trindade
          que lhe resta, perdido
o rasto ao tens cá disto?

Um país sem âmago
              é como um dedal
pode ser de ouro mas carece
de um dedo, ó caraças,
              a cabeça foi-lhe cortada tão
habilmente que tombou na tina,
               seca e peca.
Embalsamada
talvez ainda fosse a Meca,
porque prenhe de milagres e prodígios
não esmorece na tentativa
de alçar
          a palavra à boca
    para a molhar na saliva. 

Entretanto, lembro Lisboa,
a deslumbrante,
                          e a quem a tristeza
hoje sobre-lota, sob a  custódia
dos canalhas.
                     Parente distante,
sob condição de viver fora
       do Estado,
lambo a memória das feridas.
E lembro
as sete ímpares cabeças de peixe
e os poços nos vales,
o seu frescor que até o fado
                   dessedentava,
     e que hoje,
ferruginosos, fedem
do fundo às bordas,  afogada
a esperança nos sargaços.

Dizíamos? Nada.
                  Não dizíamos nada.
Se queres sair da cepa torta
liga-lhe,      é amigo do Relvas
(o filho bastardo de Mister Chance),
um gajo mesmo à maneira
         que escancara janelas e portas,
dono, recordas-te, estava
nas Amoreiras mas mudou
para Telheiras,
                      da Confeitaria
Tortue. Evidente, em Portugal
tudo rima com tartaruga!
        O certo, bom povo tuga,
é que antes de seres designado
pela iniquidade da História,
           havia desovas de trutas
nos teus rios, e picanços
que polvilhavam os telhados.
Hoje a paisagem é um plateau
para as telenovelas da TVI
            e no Big Brother vê-se
a forma inacabada do teu crânio.
 
Que bela tença, meu Capitão!

Ao fundo, no seu quarto, a Luna,
           o meu pequeno orvalho matinal,
toca Paganini no violino,
 e sacode-me a melancolia:
          va te faire foutre, Portugal!
Um país que mataria de riso
o Buster Keaton!
                            Já a Ana,
a mais velha, voltou a Lisboa
para observar que vista do céu
                nada nela fosforesce
                 além do sorvo de ar
com que a Igreja do Carmo
        acolheu o firmamento
- o mesmo alfabeto oco
que circula nas veias do morto.

Mentira, fala o pai por ela.
Porque Lisboa se fantasmeia num texto
                 indecifrado,
substituídos os limoeiros
por garagens, enquanto
com descaro, no fb,
os políticos juram
a sua tremenda versatilidade
          e rejeitam a dignidade
de um dissídio, por inaudito
               amor à urbe
       que maltratam,
no intervalo de um Black Label,
pirataria de um bridge fora de portas.

Lie to me, eu aprendi tudo
        com o Tim Roth, terra
ingrata, espúria, mesquinha -
tivesses tu um Ovídio
    que escrevesse a sua Tristia
a partir da diáspora interior
- imagem tão justa como ser
       almofadado o que apura
as garras, na palma dos lobos.


Vês aquela falésia, ali?
                Tu és aquela falésia!
– ensina um pai desempregado
aos filhos, nos miradouros
           da cidade dos corvos,
com a voz trémula dos indecisos.
Porque a coragem, ó caraças,
     foi-lhe cortada tão rente
que tombou na tina,
               seca e peca.
Embalsamada
talvez ainda fosse a Meca,
pois prenhe de milagres e prodígios
não esmorece na tentativa
de alçar
          a palavra à boca
    para a molhar na saliva.

Deixem que me zangue,
                 vivo na carne o pendor
com que o país desbarata
                qualquer lampejo
         e faz da crise
viático para nababos!
Que mais dizer de um destino
cismático, perfurado
           por chernes e roedores,
em que acefalamente – as pessoas
querem divertir-se, esquecer
os problemas – nunca
       se vota em Ibsen?

Bela tença, senhor Capitão!
 
Átomo volúvel e inúmero,
                                     de tão divisível,
                 que conduta
manifesta na Europa?
Portugal cuida dos filhos,
                        da casa, da cozinha.
Ah, e tem aquele Sol,
                   um ladrão cristalino
que vai às caixas de Mon Chéri
afundar no licor as mariposas.
Não me incube ser cúmplice
                   de tanta irrealidade,
perdemos o domínio dos detalhes
- a febre virulenta que cega
os povos de si mesmos.
Álcool e tabaco são legais,
pode um país sê-lo
                   se oferece miragens
mais tóxicas que a terebentina?

Sabes Sena, só no teu parentesco
                 se curva ainda o mar.
          Já reparaste Helder
como até as nuvens se marasmam
         sobre o Terreiro do Paço?
Num ser paródico, apátrida,
        culminou o espírito luso.
Falo dos Barrosos desta vida!
O que lhe deu maleabilidade
          para ir apertando o cinto,
disfarçando a usura do tempo
         (as máscaras de um vampiro
         que a si mesmo suga),
mas dá pouca estaleca face à morte.

Ah, mas isto não se deve dizer
não se diga, não se diz…
Rilha.
         Ofereço-lhe as cenouras?
Afinal, nunca foi à tropa,
meu estouvado Capitão?   

* citam-se neste poema versos de Herberto Helder, Fernando Pessoa e Helder Macedo


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